Livro 'Regurgitofagia', de Michel Melamed, repete sucesso da peça

Miguel Conde - Globo Online


Ilustração da capa do livro. Foto: Divulgação RIO - Regurgitofagia é uma idéia que Michel Melamed transformou em peça, disco e livro. O espetáculo foi um dos acontecimentos da temporada teatral carioca do ano passado. Teve carreira prolongada e embarcou para o Sesc Belenzinho (sábados e domingos, às 21h, até 6 de março), em São Paulo, carimbado por elogios da rigorosa crítica Bárbara Heliodora (e de outros). Os textos que estão em ''Regurgitofagia'', o livro (Editora Objetiva, 2004), são a base da encenação de Melamed. Sem poder dispor aqui dos elementos que complementavam a palavra em cena, Melamed utilizou recursos editoriais que fazem de ''Regurgitofagia'' um livro performático, que sugere, em sua formatação incomum, algo do espetáculo teatral.

No princípio, era o conceito. Regurgitofagia, o neologismo, nos remete imediatamente à antropofagia de nossos primeiros modernistas. Numa atualização inteligente, Melamed observa que a deglutição seletiva de conteúdos culturais proposta por Oswald de Andrade é hoje uma impossibilidade, devido à aterradora sucessão de imagens, idéias, slogans e siglas que compõem o horizonte de nossa vida cotidiana. Diante da alimentação compulsória e excessiva de informações, a regurgitação é um ato de resistência. Debaixo de tantos apelos, a proposta de Melamed é recuperar alguma medida humana, expondo pela paródia o vazio dos sentidos pré-fabricados.

Quem já assistiu a Melamed apresentar o programa "Comentário geral", da TVE, reconhecerá no escritor o estilo do showman, que é muito representativo - para o bem e para o mal - de uma geração de cariocas para quem a literatura esteve muitas vezes associada à cena aberta dos saraus literários. Sua vocação para a improvisação, que ele conjuga habilmente com carisma e conhecimento cultural, faz dele o representante mais talentoso de uma escola formada nesta fusão de literatura, festa e 'happening' que a cidade há alguns anos adotou e cultivou como paradigma da diversão intelectualizada.


Melamed em ação em evento em homenagem a Waly Salomão, em 2003. Foto: Camila Maia / 25.06.2003 Os participantes destes eventos, assumindo o papel de ''entertainers'', aprenderam a reforçar, com a sedução da presença carismática, os apelos do texto. Daí surgiram coisas interessantes e outras nem tanto, como é natural. De qualquer jeito, é dentro desse contexto de encontro entre performance e literatura - já sugerido pela amplitude do projeto Regurgitofagia - que este livro de Michel Melamed pode ser inscrito.

O humor, e particularmente o non-sense, é o método básico da guerrilha de Melamed contra a "coisificação", como ele diz, das relações humanas. A inserção de conteúdo cômico em modelos cristalizados de enunciação revela, pelo contraste, o quanto certas maneiras de dizer as coisas, que de tão repetidas nos parecem naturais, são na verdade arbitrárias e artificiais. Estes automatismos da linguagem, os pesos mortos que facilitam mas domesticam a expressão, são encontrados por Melamed tanto nos momentos mais íntimos de nossas vidas (como num pedido de casamento) quanto na praça pública dos programas de auditório. Em cada caso, com efeitos diferentes.

Um dos melhores textos do livro começa com o clichê "Casa comigo que te faço a pessoa mais feliz do mundo", e continua, entre a emoção e o humor: "A mais linda, a mais amada, respeitada, cuidada... A mais bem comida. E a pessoa mais namorada e a mais casada. E a mais festas, viagens, jantares... Casa comigo que te faço a pessoa mais realizada profissionalmente. E a mais grávida e a mais mãe. E a pessoa mais as primeiras discussões. A pessoa mais novas brigas e discussões de sempre. Casa comigo que te faço a pessoa mais separada do mundo. Te faço a pessoa mais solitária com um filho para criar do mundo (...) Casa comigo que te faço a pessoa mais 'casa comigo que te faço a pessoa mais feliz do mundo'".

Em outro bom momento, a paródia da crueldade mal disfarçada de alguns programas televisivos produz um incômodo efeito cômico: "Alou? Alou? Tem alguém na linha? Não tem ninguém na linha? Tá no ponto? Não tá no ponto ainda... Mas eu queria aproveitar a oportunidade para agradecer. Agradecer ao papai e mamãe, ao vovô e à vovó, às crianças - que são o futuro do nosso país - e à juventude - que está perdida. Por que é você, graças a você!, que eu tenho mais de 100% da audiência nacional! Por gentileza, dá um close aqui: pode ver: o Show do Estupra? 100%! Agora a concorrência: Show do Assassino? É traço. Show do Ladrão? É traço!! Show do Fascista? Traço!!! Traço!!! Traço!!! Só o Show do Estupra tem 100% da audiência nacional!!! Muito obrigado... Deus ilumine todos vocês..."


Cena do espetáculo Regurgitofagia. Foto: Divulgação O livro alterna figuras e fontes de tamanhos diferentes para determinar um ritmo de leitura, em alguns trechos, ou propor ao leitor a realização de ''exercícios'' regurgitofágicos, em outros, e em outros ainda parodiar adesivos e folhetos de propaganda . Os poemas mostram que o trocadilho e o jogo de palavras, antes de serem organizados em projeto, fazem parte do estilo de Melamed como escritor (um dos melhores começa com o belo verso ''Haja marginal, haja herói'', adaptação da frase de Hélio Oiticica - mas em geral os poemas não têm a expressividade alcançada por alguns dos textos em prosa).

Quem quiser, pode encontrar motivos para se cansar de tanta inteligência, já que nem todas "sacadas" do livro (e há muitas delas) resultam interessantes. Uma certa pirotecnia das idéias faz mesmo parte do estilo de Melamed, em livro ou ao vivo, e aqui é propositalmente acentuada para reproduzir, justamente, o excesso de estímulos de que "Regurgitofagia" trata. Isso em si não é ruim, mas às vezes o leitor sentirá vontade de pedir dez minutinhos de burrice para descansar do brilhantismo. Mas para estes momentos, o próprio livro já encerra a lição: "Regurgitofagia: "vomitar" os excessos a fim de avaliarmos o que de fato queremos redeglutir". Pois então: "Regurgitofagia" está aí para ser, ele também, regurgitofagitado.
 
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Fonte: http://oglobo.globo.com/online/plantao/166697928.asp

- c.a.t.
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