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Actual date:
21/08/2124
Subject: Memórias do Século
XXI
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MEMÓRIAS DO SÉCULO
XXI
"Hoje é 20 de agosto de 2124,
quarta-feira, que no Brasil agora chama-se wednesday, já que o português foi
oficialmente banido quando nos tornamos o 67° Estado dos United States of
Wide America, em 2095.
Teve quem não gostasse, claro.
Principalmente depois que a Floresta Amazônica virou a Tropical Disney
World, mas a maioria apoiou porque finalmente pode tirar passaporte
americano sem aporrinhação e passou a receber salário em dólar.
Ë
verdade que muitos brasileiros ainda conservam um ranço xenófobo, o que
é meu caso, por isso este relatório está sendo escrito em nossa antiga
língua-mãe, que eu só domino porque nasci lá no distante 1980.
Fiz
144 anos, trabalho há 126, estou forte e saudável, mas já ouço insinuações
de que minha carreira entrou no plano vegetativo. A vida corporativa do
século XXII não é justa com o pessoal da sexta idade, como eu: basta à
gente chegar aos 140, e começa a ser discriminado no
trabalho...
Os velhos tempos me dão saudade (uma
de nossas poucas palavras que entraram no Mega Dicionário Americano, como
sinônimo para "senseless feeling"), apesar de quase mais nada ser como
era.
Por exemplo, eu nasci com unha, cabelo e dente, últimos
resquícios de nossa ascendência selvagem. E na juventude pratiquei
zelosamente um ato denominado "sexual" para a reprodução da espécie, coisa
que, hoje, a ciência simplificou muito: basta ir a qualquer McDonald's,
comprar um kit de óvulo e espermatozóide (o numero 3 tem sido o
preferido pelos consumidores, porque acompanha uma Coca-Cola grátis) e
inseri-lo num tubo plugado a um sistema embrionário - cujo nome
técnico é "tamagoshi".
Depois, e só redigitar a configuração
desejada do genoma e depois ir clicando os comandos para as cargas vitais de
proteínas.
Simples. Em seis semanas, aparece a ficha fitoergométrica
da criança, os custos de alimentação e educação e a mensagem "Are you sure
you want to give birth?" Meu filho mais novo, o 365A27W648, vulgo "8",
agora deu de ser curioso e me perguntar porque no meu tempo as
coisas eram tão complicadas.
Eu tentei explicar para ele que o tal
ato ia alem da simples reprodução, que a gente sentia prazer em copular, e
ele aquela cara de nojo, típica de adolescente recém-saído da universidade.
Mas, tudo bem, ele tem só 4 anos, um dia talvez entenda melhor.
Eu
sei, estou divagando, desculpem. Não é das reviravoltas da natureza que este
relatório trata, e sim das relações no trabalho. Meu hiperboss vai
fazer uma apresentação no mês que vem, em Urano - com o criativo titulo de
"Como enfrentar os Desafios do Século XXII" - e pediu minha
colaboração.
Ele quer mostrar as novas gerações à
evolução da interação entre empresas funcionários ao longo dos últimos 150
anos, desde a chamada "Era Jurássica Trabalhista" (1980-2020) até o
aparecimento do "Homo Pizza", no final do século XXI. E me escolheu
porque eu vivi todas as etapas do processo, além de ser o único por
aqui que ainda sabe usar algarismos romanos.
Então, vamos
lá:
TRANSPORTE
Os empregados acordavam de
manhã e iam para seu local de trabalho dirigindo um veículo pesadão e lerdo,
que funcionava queimando derivados do extinto petróleo, chamado "automóvel"
- não sei bem por que esse nome, que significa "move-se por si mesmo", já
que o tal veículo só se movia sob comando humano e, algumas vezes, nem
assim.
Mas a maior dificuldade era enfrentar o trânsito", do latim
transire, "ir para a frente", e esse era exatamente o problema, já que o
trânsito quase nunca ia em frente, e daí originou-se a frase de uso muito
comum, "Atrasei por causa do trânsito", que literalmente significa "Fiquei
para trás porque fui para a frente". Ou seja, aquele povo era duro de
entender.
O mais incrível é que,
apesar de tanta confusão e contrariando a
lógica, as pessoas ainda
conseguiam chegar ao que chamavam "local
de trabalho".
LOCAL
O sistema jurássico de trabalho era
coletivo, e as empresas até usavam jargões como "teamwork" para incentivar
essas aglomerações, sem atentar para o fato de que elas eram uma fonte de
proliferação de micróbios.
O ponto de encontro era o escritório,
um lugar onde os funcionários escreviam, daí a origem da palavra. Eram áreas
enormes, onde pessoas se amontoavam em cubículos e passavam a maior parte do
tempo produzindo "documentos", cuja principal finalidade era a de servir
como evidência física de que as pessoas estavam ocupadas.Após produzidos, os
documentos eram imediatamente arquivados", de preferência em lugares onde
nunca mais pudessem ser localizados. Isso na época tinha o mesmo nome
de hoje, "burocracia". A diferença e que os atrasados do século XX
faziam tudo com oito copias, e nos, 50 anos depois, conseguimos reduzir para
sete.
INDIVIDUALIDADE
O primeiro passo para
erradicar o coletivismo inútil foi o "SoHo" (Small office, Home
office), uma sigla surgida aí por 2000, que permitia aos funcionários
trabalhar, confortável e produtivamente, em suas próprias casas.
No
Brasil, uma das conseqüências imediatas do SoHo foi o aparecimento de uma
variante esperta, o "SoNo". O que obviamente implicou num aumento brutal da
quantidade de documentos produzidos, porque só assim os chefes acreditariam
que seus funcionários estavam acordados em suas casas.
Depois do SoHo veio o "SoCo", ai
por 2050. O "Co", todo mundo sabe, significa Chip Office.
Foi quando
as corporações conseguiram implantar um microchip em cada funcionário para
controla-lo 24 horas por dia, desde o batimento cardíaco até o nível de
atividade dos neurônios. Uma das características do SoCo que mais agradou as
chefias - alem do comando de "wake up call" - foi a possibilidade de emitir
um choque elétrico remoto quando o funcionário atrasasse a remessa de um
documento.
JORNADA
Trabalha-se oficialmente 2
horas por semana, mas já há rumores de que a jornada será reduzida para 100
minutos semanais. O que, tirando o tempo necessário para o sono e as
inconveniências fisiológicas - que não sofreram alterações nos últimos 100
000 anos -, da umas 120 horas ociosas por semana. O professor Domenico De
Masi, que vive em estado de hibernação metafísica na Itália, afirma que isso
é um absurdo, e defende a tese de que no futuro trabalharemos 100 minutos
por ano.
Mas o problema, mesmo, é que nunca conseguimos nos acostumar
com o ócio. Por isso, nossa maior fonte de renda atual é a hora extra -
fazemos, em média, 14 delas por dia, inclusive aos sábados.
EFEITOS
COLATERAIS
Hoje, as mega-corporações vêm se questionando se
essa troca do trabalho grupal pelo individual foi realmente um progresso.
Primeiro, porque ninguém mais conhece ninguém, já que os "colegas" viraram
imagens digitalizadas.
Segundo, porque todo mundo ficou
sedentário e engordou uma barbaridade.
E terceiro porque os antigos
executivos eram estressados, e os novos sucumbem à depressão, o que acarreta
muitos suicídios (ou, em linguagem ciberneticamente correta, Self
Alt+Ctrl+Del).
O maior guru de administração do século XXII - Tom
Peters, vivendo confortavelmente em estado gasoso, num tubo de ensaio -
publicou recentemente um artigo que esta causando uma comoção
corporativa.
Ele defende a tese de que "nada
substitui o contato humano". Incrível, dizem seus fiéis admiradores,
que ninguém tivesse pensado nisso
ainda.
EMPREGO
Conseguir um bom emprego hoje
em dia não é difícil. O duro é se manter nele, porque as exigências para
resultados de curtíssimo prazo aumentam cada vez mais. O tempo médio de
permanência num emprego e de 28 horas.
Dai o conceito em moda ser o da
habilidade para saltar de galho em galho, ou "businessbilidade", que se
resume a três fatores: experiência cósmica, formação galáctica e ser bem
relacionado com quem manda.
SEXO
As
diferenças entre sexos não são mais limitantes para o preenchimento de um
cargo. Não porque tenha acabado a discriminação, mas porque acabaram os
sexos. A antiga classificação "masculino/feminino/outros" caiu em
desuso a partir do momento em que os assim chamados "homens" e "mulheres"
equilibraram seus níveis de testosteronas e estrogênio.
A ambivalência
chegou a tal ponto que hoje os dicionários só registram a palavra
"testículo" como sinônimo de "pequeno teste aplicado a
estagiários".
HIERARQUIA
Nos
tempos primitivos, as posições hierarquicas eram decididas ou por
competência ou por protecionismo. Mas levava vantagem quem acumulava mais
diplomas. Tudo mudou a partir do momento em que foi implantado o sistema de
"Transferência Integral de Informações", pelo qual qualquer ser humano,
quando completa 2 anos de idade, é acoplado a um megacomputador Deep Blue e
absorve, em 15 minutos, o conhecimento acumulado pela espécie nos últimos
dez milênios. Tem aí uma novíssima teoria dizendo que isso nos transformou
numa raça de esponjas, e que o grande diferencial atual é saber pensar por
conta própria, em vez de enfiar o dedo no nariz e dar um
"retrieve".
Segundo a teoria, há uma minoria de pensantes que
consegue se perpetuar nas chefias porque tem "Inteligência Psicoemocional",
ou seja, uma combinação balanceada de "instinto", "conhecimento" e
"autocontrole".
Eu acho que já ouvi isso antes, só
que não me lembro bem quando foi.
RELACIONAMENTO
Os
funcionários tem abertura para se comunicar fora do trabalho, desde que
respeitem o conceito-chave do século XXII: Lógica Absoluta, ou seja, os
assuntos devem ficar restritos aos negócios. Sentimentos e emoções,
manifestações consideradas contraproducentes, estão proibidas desde 2104.
Mas sempre tem quem não sabe aproveitar a liberdade: nosso maior problema
social são os subversivos que se reúnem escondidos para praticar o maior
delito da atualidade: rir e contar piadas. Não é por acaso que o maior
best-seller desta semana e o cibertexto de auto-ajuda "Você Pode Ser Feliz,
Desde Que Ninguém Saiba".
INTERNET
A
arcaica Internet, uma rede de comunicação que causou furor no fim do século
XX, e que hoje é citada como exemplo de paranóia coletiva, foi substituída
pela Infernet, a qual todos somos plugados logo ao
nascermos.
A palavra veio do latim infernus,
"subterrâneo", uma analogia a seu formato de raízes que alimentam o caule
central. O caule, de onde saem e para onde convergem todas as informações, e
a Suprema Inquisição, cuja regra é "Todos somos iguais perante Deus". Sendo
que Deus, como todos sabem, é Bill Gates. Embora corra por ai o boato de que
quem manda, mesmo, é o ACM.
CONCLUSÃO
Em meus 144 anos vi o futuro ir
acontecendo, e aprendi pelo menos uma coisa: as previsões estavam sempre
erradas. Acho que descobri o porquê.
Outro dia achei um livro antigo,
que já caiu em desuso por ser a negaçãoda lógica. mas de qualquer forma, lá
foi escrito, ha milhares de anos, que cada dia é diferente do outro,
exatamente "para que o homem nunca possa descobrir nada sobre seu próprio
futuro" (Eclesiastes, 7, 14)."
Adaptado do livro "Admirável Mundo Novo".