O mito do "apagão de talentos"

Posted on 22/05/2012

Converse com um analista de RH, com um empresário ou com um
proeminente executivo de grande empresa por mais de 20 minutos e
você ouvirá a expressão do título desta postagem. A pessoa
discorrerá sobre como há uma carência de profissionais
preparados no Brasil, sobre como é difícil encontrar gente
competente para posições que exigem algum preparo, enfim. Ela
comentará que há um "apagão de talentos", uma falta de pessoas
preparadas para crescer e ocupar posições de responsabilidade e
destaque.

Falarei futuramente sobre a visão de negócio dos empresários
brasileiros, que é curta. Sobre a insipidez geral dos
profissionais de RH, reduzidos a contratadores e demitidores em
série e calculadores de benefícios legais de departamento
pessoal. Sobre a falta de adaptação da alta-gerência à uma nova
realidade empresarial que nasceu nos EUA na década de 1990 e
agora chega aqui. Sobre a direção das empresas, crente que os
profissionais do mercado não evoluíram nada nos últimos anos.
Mas neste momento quero focar em como o meio empresarial se
apropria de modismos de revista para moldar uma situação
alternativa à realidade do mercado. O mais forte dos modismos
atuais é culpar o Apagão de Talentos pela inabilidade das
empresas em angariar e reter bons profissionais em seus quadros.

A culpa é do mercado

A maioria das empresas, especialmente as grandes, gosta de
culpar o mercado ou os concorrentes por seus próprios problemas.
Não conseguir suprir suas áreas com trabalhadores de qualidade,
em ritmo igual ao de demissões, é algo cuja culpa rapidamente se
atribui a terceiros. O próprio ritmo das demissões deveria ser
um indicativo de que a "política para retenção de talentos" da
empresa tem algum problema.Se somos tão bons em reter talentos
porque tantas pessoas vão embora? É uma pergunta que não é feita
com a frequência necessária nos departamentos de RH.
"Nós não pagamos pouco, não oferecemos poucos benefícios, não
temos um nome ruim no mercado profissional, não somos vistos
como uma empresa que exige demais com metas nem sempre justas.
Não! Nada disso! Nós não conseguirmos contratar novos
profissionais com qualidade porque eles não estão lá fora!"

É cômodo e fácil colocar a culpa em terceiros. E, assim que a
primeira revista "especializada" deu a deixa, todo mundo o fez.
Bons profissionais são como qualquer bom ativo
Eles estão lá fora. Mas você precisa procurar por eles. A
maioria das empresas coloca um anúncio em sites de emprego ou
empresas especializadas em Head Hunting que é mais ou menos
assim:

Gerente de Projetos de Automação.
O profissional será responsável por gerenciar projetos de
automação de dispositivos respondendo ao Diretor Industrial pelo
andamento, orçamento, e entrega dos projetos afim de manter os
equipamentos em funcionamento. Ocasionalmente vai ter de
trabalhar até tarde, incluindo em fins de semana, para terminar
a implementação de projetos junto à equipe de técnicos
industriais. Disponibilidade para viagens é mandatória.

Perfil
Formado em Engenharia. Pós graduação em Gestão de Projetos ou
MBA serão considerados diferencial. Experiência de 3 anos é
fundamental. Inglês fluente é mandatório.

Benefícios compatíveis com o mercado e remuneração à combinar.

Ora, esse tipo de anúncio de emprego dá muitos indícios sobre a
"política de retenção de talentos da empresa". A empresa quer
alguém ultra responsável que irá se reportar diretamente a
alguém que facilmente ganha 3 vezes mais que ela. Com alguma
chance de, em muito tempo de trabalho, ascender à essa mesma
posição. Essa pessoa será responsável por uma função muito
importante para o ciclo produtivo que facilmente gera receita de
dezenas de vezes sua remuneração total anual. É uma posição
bastante importante para o ciclo produtivo do contratante.

Ainda assim, note que a empresa pede alguém com 3 anos de
experiência na posição, ou seja, enquanto inglês fluente é
mandatório o desejo de evoluir profissionalmente é totalmente
opcional. Trabalhar mais de 8 horas por dia é lugar comum e
concordar em abrir mão do convívio familiar está implícito. E,
por fim, a remuneração à combinar é prova clara de que a pessoa
que reúna todas essas condições ainda será paga com o menor
salário que seja possível considerando seu rendimento atual e
sua vontade de mudar de emprego. Se na entrevista o funcionário
mostrar grande descontentamento com seu empregador atual isso
provavelmente reduzirá o valor que a empresa está disposta a
pagar ao candidato.

Com tudo isso o responsável pela vaga vai ressaltar que é muito
difícil achar profissionais que atendam ao nível de
responsabilidade, experiência e requisitos da posição pelo
salário que a empresa está disposta a pagar. Está criado o
Apagão de Talentos artificial do qual estou falando. Se a vaga
citada possuir um salário atraente, em nível daqueles pagos em
outros países, garanto que não faltarão profissionais enviando
currículos para a empresa.

O problema é que as empresas, ao comprarem seus ativos,
normalmente olham para a qualidade e quando vão contratar
pessoas olham para o preço. Reclamam que não encontram os
profissionais que precisam mas nunca se dispõe a rever a forma
como avaliam os processos de contratação.

Muitas empresas vêem os funcionários como máquinas impressoras,
com as quais se deve gastar o menos possível, como com toner
remanufaturado. Que quando derem problemas serão facilmente
substituídos. Deveriam ver o patrimônio humano como se fosse o
predial. Que tem potencial de servir por anos desde que receba a
"manutenção" adequada.

Entretanto a maioria das empresas se porta como uma solteirona
de 50 anos que não queria nada mais do que um homem bonito,
educado, elegante, cheiroso, cavalheiro, com um bom dinheiro e
que fosse fiel. Ao não encontrar o que deseja, pois suas
exigências estão altas demais, brada que está "faltando homem no
mercado". Agora sim a semelhança se fez notar, não é mesmo?

Prova dos Nove

Eu já pensava muito sobre isso simplesmente observando o mercado
de trabalho em Florianópolis, cidade onde vivo. Como já
trabalhei em São Paulo e em Curitiba tenho uma perspectiva
privilegiada. Já pude observar processos de contratação de
grandes multinacionais que usam como referência os salários que
pagam à seus funcionários em outros países. Toleram pagar um
pouco mais à seus empregados no Brasil. Como Florianópolis tem
um número de grandes empresas estrangeiras (GEEs) menor do que
outras capitais do Sul e Sudeste tem também a menor média
salarial destas duas regiões.

Diferente de empresas locais, que muitas vezes se preocupam em
pagar o menor salário possível aos contratados, as empresas
multinacionais normalmente possuem tabelas de valores-base para
posições importantes na cadeia de negócios. Isso faz com que um
mercado local pequeno, como o de Florianópolis, jogue luzes
nesse tipo de diferença. Vou ilustrar com um exemplo. Em
Florianópolis é fácil encontrar gerentes de contas PJ de grandes
bancos que ganham, com 5 anos de experiência na função,
US$2,5mil/mês ou US$32.500 por ano para administrar carteiras
que giram 10 ou 20 milhões de dólares/mês. É uma remuneração
baixa para o nível de responsabilidade da função e não por acaso
os bancos encontram dificuldades em recrutar profissionais para
estas posições na região.

Sei de vagas que estão abertas há quase 8 meses e ainda sem
previsão de contratação. Em contra-partida, já vi anúncios de
gerentes de controladoria de empresas em São Paulo que pagam
US$55.000 por ano exigindo o mesmo nível de experiência que a
posição de gerente de banco. E eu entendo que as
responsabilidades envolvidas na controladoria são menores
simplesmente porque você tem apenas um patrão a quem prestar
contas, enquanto na gerência de contas você é cobrado por duas
partes que possuem interesses quase sempre contrapostos.

Este é apenas um indício de que os baixos salários em relação às
exigências das vagas faz os profissionais escassearem.
Entretanto há outra evidência. O Google Brasil reporta receber
mais de 1.200 currículos todos os meses de pessoas interessadas
em trabalhar em um de seus escritórios. Pode, com todas as
letras e cores, escolher quem contratar. O contraste em relação
ao banco que tem a vaga aberta por 8 meses é a materialização da
cultura corporativa e a forma como a empresa olha para os
funcionários. Voltarei nisso em um instante.

O Google faz coisas de forma diferente, até na área de recursos
humanos. Um funcionário recebe um prêmio de até R$5mil quando
uma indicação sua termina em contratação. No Natal de 2009 cada
funcionário da empresa recebeu de presente o smartphone que o
Google vendia, o NexusOne. Pense sobre a última coisa que você
ganhou do seu empregador. Entendeu porque o Google consegue ter
uma fila de pessoas se candidatando todos os dias?

Como ver o funcionário

Empresas criativas vêem o funcionário como um agente de novas
idéias. Fala-se muito no discurso corporativo sobre o valor que
as idéias tem (lembre do slogan do Santander: O Valor das
idéias) e sua importância para os negócios. E se a empresa
precisa de idéias para usar como combustível da inovação os
funcionários ganham valor. Não há muitas empresas assim no
Brasil pois elas estão em um novo pedaço da economia capitalista
que *ainda* não floresceu por aqui.

As empresas da economia tradicional muitas vezes olham para as
pessoas apenas como partes de suas estruturas, complementos dos
processos. E como tal, podem entender que muitas vezes eles
atrapalham o funcionamento dos processos e precisam ser
substituídos por pessoas que se adaptem melhor ao jeito como as
coisas são feitas. Ao contratar procuram pessoas que irão se
encaixar à esse perfil e traduzem isso em demandas exageradas
por habilidades e experiência.

Por exemplo, uma empresa que exija grande tempo de experiência
em uma função relativamente simples sinaliza, antes mesmo da
contratação, que não vai dar treinamento para os funcionários.
Que não vai se preocupar em patrocinar cursos, pós graduações ou
outras formas de evolução profissional. Digo de antemão que
qualquer empresa que demande experiência maior do que 6 meses
para qualquer posição de analista não está comprometida com a
evolução profissional do funcionário.

A disposição para ensinar é a característica mais importante de
um professor. Uma empresa que deseja gente pronta, que entre no
jogo jogando, não está comprometida com a evolução profissional.
Portanto não vai saber valorizar (com dinheiro e não com cartões
de natal decorados) profissionais com perfil mais completo. Se
você é um profissional mais experiente e completo deve buscar
empresas que dão valor à educação corporativa e à evolução
dentro da empresa, para conseguir o maior valor pelo que você
oferece.

Ausência de métricas

O mais interessante é que o mundo corporativo adora números,
siglas e métricas, mas nunca ninguém criou nada para
parametrizar a forma como os funcionários são remunerados por
suas atividades. Mesmo tendo uma sigla e um índice para cada
linha dos seus balancetes corporativos as empresas não dispõe de
uma métrica para que seus funcionários possam avaliar se estão
sendo bem pagos, proporcionalmente à seus pares ou colegas de
outras empresas. Como saber então se você está sendo pago
justamente pelo trabalho que está desempenhando?

Estranhamente os salários são tratados de forma super
confidencial, ainda que o balanço e ou caixa das empresas sejam
até publicados em jornais para que todos possam ver. O segredo
aqui é mantido por razão simples, para que a empresa pague a
cada um o mínimo possível para que ele desempenhe sua função. Se
você descobre que alguém que faz a mesma coisa que você ganha
30% a mais a primeira providência é pedir um aumento. Ocultar a
informação salarial é essencial para que as empresas possam
continuar funcionando e pagando aos seus proprietários valores
cada vez mais altos.

Nada contra isso e contra o capitalismo, muito pelo contrário.
Mas a falta de transparência na questão salarial contrasta com
todo o blá-blá-blá corporativo sobre meritocracia e
reconhecimento de valor das pessoas. Em um ambiente realmente
meritocrático não haveria problema se todos os funcionários
soubessem o salário do chefe. Seria até um incentivo para
trabalhar mais e mais em vista de uma promoção.
Se você ainda não aceitou esse argumento pense na seguinte
perspectiva. Na escola exibimos à todos as notas mais altas dos
melhores alunos. Não há pudor em se exibir uma nota 10. Isso é
incentivado. Na etapa seguinte, na vida corporativa, a nota 10,
isto é o melhor salário, deve ser escondida a sete chaves. Faz
sentido?

Mostrar meritocraticamente o salário do chefe para a equipe só
não funciona bem em dois casos específicos:

1- O salário do chefe não é tão bom frente à responsabilidade
que ele tem, e ter conhecimento disso traria um revés aos ânimos
da equipe. Essa situação costuma ocorrer no chão de fábrica das
indústrias;

2- O salário do chefe é muito alto em relação ao salário da
equipe e desproporcional em relação à carga de cobranças e
responsabilidades individuais, e isso causa insatisfação à
equipe que entende que alguém que não trabalha tanto ganha muito
mais. Essa situação costuma ocorrer nas empresas de serviços a
partir da média gerência.

Pela falta de um parâmetro mais geral o profissional precisa se
basear em sua própria carreira para definir se o seu salário é
justo. O modelo que eu adoto é medir o quanto ganho para cada
ano que estudei. Em tese eu devo conseguir aumentar o valor por
ano de estudo a medida que minha carreira progride. Assim, ao me
formar na faculdade eu tinha estudado por 18 anos (da primeira
série até o quinto ano de faculdade com mais 3 de secundário) e
ganhava US$94,28/mês para cada ano de estudo. Hoje estou com
19,5 anos de estudo e ganho US$133,64/mês para cada ano de
estudo. Se eu decidir fazer um MBA de 18 meses preciso de um
aumento real de salário de 7,6% apenas para que o investimento
no MBA valha a pena.

Essa métrica é interessante pois vai permitir que você compare
sua remuneração com seus colegas de função, caso você saiba o
salário e tempo de estudo deles. Mas não vai funcionar para
comparar sua função com outras posições. E nesse aspecto você
precisa desenvolver sua própria percepção de
salário/responsabilidade para cada posição de sua empresa.

Voltando ao Apagão

Sobre o apagão fictício de talentos que estamos vivendo eu
defendo que as empresas têm pecado e oferecido remunerações
muito tímidas para vagas que exigem pessoas muito qualificadas e
dispostas a enfrentar grandes responsabilidades. Conheço dezenas
de profissionais muito qualificados que não se sentem atraídos
pela maioria das vagas que aparecem em seus e-mails porque não
estão confortáveis com a idéia de trocar de emprego para ganhar
300 ou 400 reais a mais por mês.

Grande parte dessa questão está ligada à quantidade de
informação que as pessoas recebem sobre empresas da chamada nova
economia, como o Google, citado anteriormente. Claro que nem
todas as empresas podem pagar remunerações como o Google e
portanto terão que se contentar com profissionais de nível mais
baixo, por assim dizer. E aí surge outro problema. No momento de
definir os critérios para as vagas as empresas escolhem padrões
exageradamente altos, acima da realidade para os salários que
estão dispostos a pagar. Vagas com experiência de 4 anos e
inglês fluente, mas com salários de R$2.500,00 são comuns e,
sinceramente, fora da realidade. O que dizer de anúncios
buscando vendedores com carro próprio e que oferecem R$1.800,00
mais Vale alimentação?

Completa esse quadro a globalização. Ela própria que equalizou
os preços de commodities no mundo todo e virou clichê para
explicar tantas coisas. As empresas não perceberam que, em um
mundo globalizado, a mão de obra, mesmo a especializada, é uma
commodity como a soja, o minério de ferro e o petróleo. Os
salários da alta-gerência e diretoria das empresas brasileiras
já são equivalentes aos pagos nos EUA e Europa, mesmo de
empresas médias e pequenas. Porque esses profissionais dispõe da
possibilidade de ser empregados por empresas para trabalhar
offshore. Profissionais de média gerência e segundo escalão
estão experimentando o dessabor de desempenharem, em empresas
nacionais, funções equivalentes ao de colegas de outros países e
receberem uma fração apenas do que aqueles ganham.

Ao avaliar que o Itaú Unibanco é o banco com maior lucro líquido
absoluto do continente no 1S2011, incluíndo seus competidores
dos EUA, não se pode esquecer que um gerente do Itaú ganha cerca
de 1/4 do que um gerente do Bank of America nos EUA. Inclua na
análise que durante a fusão entre Itaú e Unibanco os
funcionários ficaram por 2 anos com suas remunerações congeladas
(sem que nenhuma promoção ou ação de mérito pudesse ser
efetuada) e fica fácil entender de onde vem a lucratividade tão
alta do banco. É fácil ser a empresa mais lucrativa do seu
segmento no hemisfério se seus funcionários são sub-pagos e você
fica 24 meses sem dar um único aumento.

Entretanto, como isto afeta a satisfação dos funcionários, e o
blá-blá-blá corporativo sobre ser feliz no trabalho? Não muito,
desde que seus concorrentes também se esforcem para pagar o
menor valor possível para cargos que exigem conhecimento
profundo sobre finanças, certificação das autoridades
competentes e uma grande dose de responsabilidade.

Entretanto quanto seus melhores funcionários começam a receber
propostas de outros segmentos da economia você precisa
justificar o fato de não conseguir repor profissionais tão
competentes quanto aqueles que saíram. Há uma resposta certa e
uma resposta fácil. E o Apagão de Talentos é novamente citado.

 __._,_.__
-- 
Dois Axé!!!

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"Comece fazendo o que é necessário, depois o que é possível e de repente
você estará fazendo o impossível."
                                   São Francisco de Assis
Leandro Nunes
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