Para ciência, Mazoni entrou em contato comigo após o último debate
sobre a LPG-AP em PSL-Brasil, durante o qual a FSF adicionou a LPG-AP
(ou melhor, sua tradução para inglês) como não livre.  Respondi como
abaixo, e hoje, retornando de viagem, ele autorizou a publicação
nestas listas e me colocou em contato com o Diretor Jurídico da
Celepar para prosseguirmos o debate.

Aos membros da lista, pergunto: esqueci de algum ponto importante?
Alguém tem algo a adicionar?

Obrigado,

--- Begin Message ---
On Sep 20, 2006, Marcos Vinicius Ferreira Mazoni <[EMAIL PROTECTED]> wrote:

> Pode fazer as sugestões que achares necessárias.

Obrigado pela abertura.  Omar tem tentado agendar uma reunião com
pessoas daí pra gente tentar fazer algum progresso, mas a agenda dele
pra setembro está complicadíssima, enquanto em outubro é a minha :-(

Antes disso, podemos tentar resolver pelo menos alguns pontos por
e-mail.  Gostaria de poder compartilhar o conteúdo deste e-mail com as
listas psl-brasil e com [EMAIL PROTECTED], que podem enriquecer a
discussão.  Você por acaso me autoriza a re-enviar sua mensagem e esta
resposta para ambas?  Agradeço antecipadamente,

> No caso, nós tivemos todo o apoio jurídico do Omar e por isso seria
> legal que ele nos dissesse o que modificar.

Por certo tenho tentado incentivá-lo a agir nesse sentido, mas, visto
que o trabalho dele já foi concluído, ele argumenta que, se há algo a
ser melhorado/alterado, quem há de tomar a iniciativa não pode ser
ele, mas a Celepar ou o Governo do Estado do Paraná.  Creio que ele
tenha razão.

> Tens que entender que é necessário a proteção do gestor público.

Entendo perfeitamente, compreendo bem seus motivos de receio, mas não
podemos aceitá-los como razão para ferir ou deturpar o conceito de
Software Livre que nos é tão valioso.

Em outras palavras, aplaudo a intenção do estado do Paraná de buscar a
aproximação máxima julgada possível dos ideais do Software Livre, e em
particular sua valiosíssima atuação pessoal nesse sentido, mas há de
se deixar claro que, se os preceitos do Software Livre não são
atendidos integralmente, não se trata de Software Livre.  Não fazê-lo
é, como gosto de afirmar jocosamente, vender gato por libre :-)

> Independente disso, não creio que exista estado brasileiro que mais
> use e desenvolva software livre que o Paraná, talves isso incomode
> muita gente...

Não tenho dúvidas de que o Paraná tem um imenso interesse no Software
Livre e tem feito grandes investimentos no sentido de adotar essa
tecnologia e filosofia libertadoras, não só como consumidor, mas
também como produtor.

Infelizmente, por um acidente de percurso, determinou-se o uso de uma
licença que, ainda que tente se aproximar do respeito às liberdades
fundamentais do Software Livre, falha em atender à definição em alguns
aspectos que felizmente não parecem nem um pouco difíceis de corrigir,
mas também falha em maximizar o benefício para a administração pública
da adoção de um modelo de desenvolvimento livre.


Vamos primeiro aos conflitos da LPG-AP com a definição de Software
Livre, recentemente explicitados no sítio da Free Software Foundation
dos EUA:

    * It permits use only in "normal circumstances".

Isso se refere a 10.1.1. `Por USO entende-se a utilização do PROGRAMA
em condições normais, conforme descrito na documentação técnica
deste.'

Em caso de modificação do programa que altere as condições normais, o
uso para essas novas circunstâncias aparentemente não é permitido.
Era intenção cerceá-lo, ou limitá-lo de alguma maneira?  Quero crer
que não, parece-me que tenha sido preciosismo na linguagem que levou a
essa conseqüência infeliz.


    * It does not allow distribution of source code without binaries.

Isso se refere a 12.2. `É vedada a DISTRIBUIÇÃO parcial do PROGRAMA,
que inclua apenas o código-fonte ou apenas a forma compilada.'

Vedar a distribuição do binário sem nem mesmo oferta do código fonte é
essencial para garantir as liberdades, mas vedar a distribuição dos
fontes sem binários, além de ser uma restrição descabida, ainda cria
um problema imenso para a Celepar.

Imagine que a Celepar quisesse estabelecer um repositório de código
para manutenção de seus softwares em regime de desenvolvimento bazar.
Enquanto a Celepar for detentora dos direitos autorais sobre o
programa, tal respositório é perfeitamente legal, mas no momento em
que a Celepar aceitasse uma contribuição externa, nos termos da mesma
licença, sem transferência de direito autoral, ficaria a Celepar
proibida de manter tal repositório, pois isso caracterizaria
distribuição do código fonte sem a forma compilada.

Não consigo imaginar razão jurídica para proibir a distribuição de
código fonte sem a forma compilada, portanto creio que aqui tenha
havido um equívoco na escolha dos objetivos da licença.

    * Its permissions lapse after 50 years. 

Isso se refere a 16.1. `O presente instrumento vigerá pelo prazo de 50
(cinqüenta) anos, nos termos do Art. 2º, parágrafo 2º, da Lei
9.609/98.'

Embora seja verdade que, no Brasil, o prazo de vigência do direito
autoral sobre software seja hoje de 50 anos, em outros países não é, e
no Brasil pode muito bem deixar de ser.  Alterar a licença num caso
desses, se o projeto houver sido bem sucedido e atraído a atenção de
inúmeros contribuidores, exigiria a concordância de todos e cada um
eles.

Se há preocupação de uma licença que não coíba a adoção internacional,
evidenciada pelas traduções da licença para inglês e espanhol, faria
muito mais sentido determinar a vigência do instrumento enquanto o
programa estiver regulado pela legislação de direito autoral ou de
software.

A intenção, ainda que nobre, de informar o leitor sobre seus direitos,
é atendida apenas para a legislação atual em nosso país, falhando ao
estabelecer restrições indevidas ou informar erroneamente leitores
regidos por outros ordenamentos jurídicos.

Mesmo para a legislação atual, cabe objeção à forma da escrita, por
duas razões.  A base das duas razões é que o prazo de vigência do
direito autoral da lei 9609/98 é de 50 anos a partir do 1º de janeiro
subseqüente à publicação ou, na ausência desta, da criação.

- um software publicado num 2 de janeiro e imediatamente licenciado
sob esta licença fará com que o software não possa ser utilizado desde
o dia do licenciamento, 50 anos depois, até o 1º de janeiro
subseqüente, quando se poderá utilizar o software novamente pois cairá
em domínio público.  Uma licença que intencionalmente revoga suas
permissões não é uma licença livre; pelo contrário, é uma
bomba-relógio.

- no caso de um licenciamento (efetuado através de um simples
download) que ocorra dois anos depois da publicação do software, o
informativo constante da licença é falso, pois os direitos do autor
estarão extintos antes de o período de 50 anos de vigência
estabelecido na licença.

Melhor teria sido manter o período de 50 anos como meramente
informativo, e não normativo, estabelecendo juridicamente que a
validade da licença se estende até que o programa caia em domínio
público, qualquer que seja a extensão de direito autoral sobre
software segundo a lei.


Há ainda uma incompatibilidade entre os princípios da licença LPG-AP e
a licença propriamente dita, uma vez que os princípios meramente
informativos querem fazer parecer que a licença não respeite uma das
liberdades fundamentais do Software Livre, enquanto a licença o faz.

Trata-se do princípio 6. `Não autoriza que o PROGRAMA ou trechos dele
sejam distribuídos mediante pagamento [...]', em conflito com 3.2. `A
gratuidade do licenciamento ora apresentado não obsta a cobrança por
outros serviços ou custos, como, por exemplo, o DESENVOLVIMENTO,
ADEQUAÇÃO, IMPLANTAÇÃO ou custos de DISTRIBUIÇÃO do PROGRAMA.'


Os três primeiros pontos são resultado de uma análise cuidadosa da
tradução para inglês da licença LPG-AP, efetuada pela FSF dos EUA.  A
incompatibilidade mencionada nos dois últimos parágrafos, que foi
apontada por diversos ativistas brasileiros do Software Livre, não foi
considerada pela FSF um desrespeito às liberdades por não se tratar de
conteúdo normativo.

Devo alertar que a versão original da licença, em português, não foi
submetida a análise tão cuidadosa ainda, e portanto é possível que
haja outros problemas ainda não apontados que tenham se perdido na
tradução.


Outras razões práticas para evitar a adoção de novas licenças:

- Quanto mais licenças de software livre houver, menor a possibilidade
de reutilização de código entre projetos, pois compatibilidade entre
licenças é um fenômeno relativamente raro, e de fato inviável entre
licenças copyleft (as que exigem o relicenciamento ou licenciamento de
obras derivadas, se houver, através da mesma licença).  De fato, a
escolha de uma licença nova, ao invés da utilização de uma mais
difundida na comunidade global, *minimiza* as possibilidades de
aproveitamente de código externo no desenvolvimento de aplicações de
interesse do poder público.  Não me parece que os princípios da
economicidade e da eficiência tenham sido bem aplicados nessa escolha.

- O uso de uma licença desenhada específicamente para o ordenamento
jurídico brasileiro pode parecer ideal do ponto de vista do poder
público brasileiro enquanto produtor de software, assim como do ponto
de vista do assessoramento jurídico contratado para garantir o
cumprimento das leis vigentes, porém não é compatível com a noção de
comunidade global cooperando em prol do progresso mundial, nem mesmo
com o interesse egoísta (sem demérito, apenas como antônimo de
altruísta) de atrair contribuidores externos, mesmo que estrangeiros,
a contribuir para a plataforma de software que o próprio estado
pretende utilizar.

- As inúmeras citações de leis brasileiras, de caráter informativo
ainda que em trechos normativos, (i) não têm efeito efeito jurídico
qualquer no Brasil, pois prevalece a lei independente de a licença a
corroborar, (ii) dificultam a compreensão da licença por estrangeiros,
a despeito da tradução, visto que a legislação citada não está
traduzida, e (iii) limitam a aplicabilidade da licença em outros
países, em face do risco de que tais citações detalhadas contrariem
minúcias de legislações de outros países.

- Causa-me estranheza tanto barulho a respeito de contratos de
licenciamento envolvendo licença em língua estrangeira quando o poder
público seja o detentor do direito autoral, enquanto não haja qualquer
objeção de meu conhecimento à adoção por parte do poder público de
software de proveniência estrangeira e com licença exclusivamente em
língua estrangeira (de fato, a mesma licença motivo das objeções
supracitadas).  Não consigo enxergar a lógica de permitir a
participação em licenciamentos do gênero como licenciado mas não como
licenciante.

- Há evidências, por certo posteriores à decisão do estado do Paraná
de adotar a LPG-AP, de que a GNU GPL possa sim ser utilizada para
licenciamento de software pelo poder público brasileiro, e a adoção de
tal licença abriria as portas para o reuso sem ônus do maior corpo de
software livre existente no mundo.

- Participei de discussões em que se propôs a compatibilização da
LPG-AP com a GNU GPL, com termos que permitiriam ou mesmo obrigariam o
relicenciamento sob esta de software licenciado sob aquela.  Ainda que
eu consiga vislumbrar como isso possa contribuir para resolver o
problema da língua e imagine que uma licença específica para o
ordenamento jurídico brasileiro possa trazer maior conforto e
tranqüilidade tanto para o administrador público quanto para seu
conselheiro legal, não vejo como essa possibilidade de relicenciamento
escape de eventuais acusações de improbidade administrativa que o
licenciamento direto sob a GNU GPL poderia propiciar.

- Some-se a isso o fato de que o óbice ao uso da GNU GPL para
licenciamento pelo poder público inviabilizaria a agregação de
contribuições externas a projetos criados por esse mesmo poder público
e licenciados sob uma LPG-AP com cláusula de relicenciamento como
acima, visto que tais contribuições se dariam sob a GNU GPL, e
portanto não poderiam ser licenciadas pelo poder público mediante
outra licença, nem mesmo a LPG-AP modificada, salvo em caso de
transferência de direitos sobre a contribuição externa.

- Assim como o Brasil, com destaque para o estado do Paraná, outros
países têm encontrado no Software Livre uma alternativa à repetida
reinvenção da roda exigida pela mentalidade do software proprietário.
A busca por soluções jurídicas customizadas para cada país segue na
contra-mão da busca por soluções técnicas genéricas, que possam
atender a diversos países e portanto ser desenvolvidas e mantidas em
forma de cooperação entre os diversos poderes públicos envolvidos.

> Abraços

Outros, e mais uma vez obrigado pelo contato e pelas contribuições que
tem feito pelo Software Livre, assim como pela disposição em ouvir
nossos receios e preocupações.

-- 
Alexandre Oliva         http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/
Secretary for FSF Latin America        http://www.fsfla.org/
Red Hat Compiler Engineer   [EMAIL PROTECTED], gcc.gnu.org}
Free Software Evangelist  [EMAIL PROTECTED], gnu.org}

--- End Message ---

-- 
Alexandre Oliva         http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/
Secretary for FSF Latin America        http://www.fsfla.org/
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