Bobas do corte, bobas da corte
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Jorge Antunes
Professor titular da Universidade de Brasília

Quem tem poucos neurônios em funcionamento pode aceitar se submeter à
atividade, bem remunerada, de divertir a corte. Moças que têm neurônios
destruídos desejam ser modelos. Forma-se, então, o círculo vicioso do mundo
da moda. Este exige magreza, que provoca anorexia, que provoca destruição de
neurônios, que provoca novas pretendentes à atividade profissional de
modelo.

O processo cruel de exploração humana não é novo. Sempre existiu. A cada
momento da história da humanidade as classes exploradoras, sempre
acobertadas pelo Estado, estiveram inventando métodos e técnicas para
colocar seres humanos degradados divertindo os abastados donos do poder.

O romance O homem que ri, de Victor Hugo, conta a história de uma criança
que no final do século 17 é seqüestrada, por ordem do rei, e é cruelmente
desfigurada, tendo a boca rasgada até as orelhas. A criança se tornaria um
homem de riso permanente, ótimo para servir como saltimbanco e bobo da corte
para distrair os poderosos.

A idéia geradora do romance de Hugo não tem nada de fictícia. No século 18
começaram a ser criadas associações de compra-crianças. A atividade desses
grupos de empresários consistia em comprar crianças para deformá-las
fisicamente. Após lhes terem cortado o nariz, rasgado a bocas, deformado o
rosto a ferro em brasa, quebrado a coluna vertebral, as crianças eram
vendidas às cortes, aos sultões e aos papas, para alimentar as atividades de
saltimbancos e bobos da corte.

Ezio Bazzo, no livro A lógica dos devassos, analisa outros momentos
semelhantes da história da humanidade que envergonham o homem de hoje. A
crueldade humana desponta em outra atividade no século 17, quando a Igreja
proíbe mulheres de participar do coro. A solução é a castração de crianças,
para que cresçam homens que farão as vozes agudas da polifonia coral. Para
salvar a arte, a castração de crianças era admitida por papas, bispos e
regentes daquela época. Os castrati italianos existiram até o século 19.
Ocidente e Oriente, nesse caso, se encontram culturalmente, porque os
eunucos, os homens castrados, eram os guardas dos haréns.

Na Índia também existiu a prática. Governantes castravam crianças e as
educavam para cuidar dos haréns. Eunucos ainda existem na Índia, muitos
deles por opção própria dos que desejam uma identidade mais feminina. São
temidos e respeitados porque muitos acreditam que eles possuem poderes
sobrenaturais. Suas atividades profissionais incluem a bênção em casamentos,
nascimentos e outras celebrações.

Pierre Bourdieu, ao estudar a sociologia do esporte, enveredou numa
perspectiva crítica que explica o processo de dominação e domesticação na
ordem social vigente. O autor lembra que as classes abastadas praticam
preferencialmente esportes individuais onde é destacada a figura do sujeito
e que não exigem grande sacrifíco corporal, como é o caso do tênis e do
golfe. Às classes populares são reservados os esportes caracterizados pelo
jogo coletivo e importante quota de agressividade e sacrifício corporal.

Valter Bracht vai mais longe nessa análise, observando que o esporte amador
é reservado à elite, enquanto o esporte espetáculo é produzido por
profissionais para a massa de expectadores. Assim, os fins capitalistas se
evidenciam, com as classes altas lucrando com o interesse que o povo tem
pelo esporte espetáculo.

Desfiles de moda se enquadram nesse contexto. As magricelas elegantes,
verdadeiras garças sensuais, garças cheias de graça, saracoteiam
maliciosamente na passarela, vestindo trajes investíveis, mas extremamente
divertidos. São obras de arte que flutuam no tempo e no espaço para o
deleite de olhos burgueses opressores. Para deleitar os poderosos, as
esqueléticas precisam se maquinizarem de modo a não criar problemas.
Exigência de altos salários não é problema. Mas têm que sofrer de anorexia
para que parem de menstruar, sintam desejo de se isolar da família e se
tornem inférteis.

A sentença reconheceu o fato de que o bem móvel foi transferido para o
proprietário. Comprova-se, assim, não haver motivo para transformar o autor
em réu — objeto do pedido de reconvenção. Conclui-se que os procedimentos
previstos nas leis processuais foram cumpridos pelo juiz na sentença de
primeira instância.

As bobas de corte e costura, enfim, são como os antigos bobos da corte: têm
que se degradar, se desfigurar, se entregando ao aviltamento corporal, para
deleite da alta burguesia e das classes dirigentes.
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