"Inacreditável e
perigoso"*
O ex-secretário de Defesa dos EUA,
Robert McNamara, acha que a nova proposta de política nuclear de seu país pode
levar a uma outra corrida de armas atômicas, que envolveria China e
Rússia
Carlos Azevedo
No início de março, o jornal Los Angeles Times
deu uma notícia literalmente explosiva: revelou trechos de um documento
confidencial do governo americano que anunciava mudanças estratégicas na
política nuclear. Na semana seguinte, o site especializado em assuntos militares
e de espionagem, GlobalSecurity.org, divulgava amplos trechos do
texto.
Na sua essência mais profunda, o documento -- Nuclear Posture
Review (Revisão da Posição Nuclear) --, assinado por Donaldo Rumsfeld,
secretário de Defesa, e enviado pelo Executivo ao Congresso em janeiro passado,
define uma nova política militar dos EUA que prevê a criação de condições de uso
sistemático de armas nucleares em suas ações militares, combinadas com outras
armas.
O que há de novo é isso. A frase-chave do documento parece ser a
que defende "maior flexibilidade com respeito ao uso das forças nucleares do
que na época da Guerra Fria". A justificativa apresentada no texto é a de
que agora existe uma larga lista de tipos de alvos e situações militares. As
opções de ataques nucleares têm que variar em escala, escopo e propósito para
complementar outras capacitações militares. Traduzindo: trata-se de criar
condições de usar efetivamente armas nucleares.
Antes, durante a Guerra
Fria, as armas nucleares foram desenvolvidas e usadas (pela União Soviética e
pelo campo socialista) como forma de dissuadir a potência inimiga de atacar e de
usar armas nucleares. Os EUA não tinham esse desiderato; na verdade, foram
contidos pela política militar do campo socialista e pelos pacifistas em todo
mundo, inclusive em seu próprio território. Uma indicação disso é que os EUA
usaram armas nucleares na 2a. Guerra e posteriormente, por diversas vezes,
cogitaram de usá-las, como nas Guerras da Coréia e do Vietnã.
Agora, não
há mais o contraponto da URSS. O documento americano diz que a política militar
dos EUA está defasada. Em tradução livre: "Após a queda da URSS, as forças
nucleares dos EUA passaram por poucas mudanças em tamanho e composição e ficaram
aquém do necessário e inadequadas..."
O documento diz algo como isso:
com a redução da ameaça oferecida pela Rússia hoje, uma revisão da postura
nuclear dos EUA impõe a superação daquela da Guerra Fria para uma nova maneira
de ver a situação para que os americanos e seus aliados tenham um sistema de
segurança adequado. Fala em terroristas e Estados bandidos armados, que vão
querer pôr em xeque o sistema de segurança dos EUA usando armas
nucleares...
Em resposta, é preciso uma nova política, que o documento
chama de Nova Tríade, uma doutrina com três pernas. A primeira é a ofensiva, que
conta com os armamentos herdados do tempo da Guerra Fria -- mísseis
intercontinentais, lançados de terra e de submarinos, bombardeiros nucleares de
longa distância, que continuarão a jogar um papel vital. Contudo, serão apenas
parte da primeira perna da Nova Tríade integrada com novas capacidades
estratégicas não nucleares que fortalecerão a capacidade de dissuasão
norte-americana.
A segunda perna da Nova Tríade requer desenvolvimentos
em defesa ativa e passiva. É resultado do reconhecimento de que a força ofensiva
sozinha não consegue deter uma agressão no novo ambiente de segurança do século
21 (os atentados de 11 de setembro mostraram isso). Daí a necessidade do sistema
de defesa antimísseis apelidado de "Guerra nas Estrelas", e que já está em
desenvolvimento. O documento reconhece que a defesa ativa e passiva não consegue
ser perfeita, mas pode diminuir a efetividade dos ataques e desencorajar ataques
etc.
A terceira perna é a infra-estrutura de defesa. Desde o fim da
Guerra Fria essa infra-estrutura nuclear se atrofiou. Novas posturas para os
próximos 20 anos devem ser desenvolvidas. Para reorganizar a infra-estrutura
nuclear é preciso eliminar armas obsoletas, reduzir o arsenal e desenvolver
novas armas que diassuadam os inimigos de competir. Isso vai custar muito
dinheiro.
A Nova Tríade tem quatro objetivos: garantir, dissuadir, deter,
derrotar.
O documento fala da necessidade de desenvolver novas armas
nucleares e define em que condições elas podem ser usadas: "Armas nucleares
que possam ser empregadas contra alvos capazes de disparar ataques não nucleares
contra os EUA. Exemplos: fortificações subterrâneas profundas ou instalações com
capacidade de produzir armas biológicas".
Considera como inimigos
potenciais mais de 70 países que usam fortificações subterrâneas profundas para
propósitos militares, conforme listagem apresentada por documento da
inteligência de junho de 1998, usado agora como referência. Calcula-se em 10 mil
os dispositivos subterrâneos no mundo; 1.100 deles são bases de mísseis, locais
de liderança, comando e controle. Estão neste momento crescendo para 1.400. São
muito profundos e difíceis de localizar, mas os EUA estão desenvolvendo meios de
fazê-lo.
Os EUA não têm armas suficientemente adequadas para destruir
essas bases subterrâneas profundas. Por isso, estão desenvolvendo armas
nucleares de potência mais reduzida, mas destinadas a penetrar profundamente no
solo. As forças americanas precisam de um eficiente "penetrador de terra", que
será um artefato muito pesado, que penetrará mais fundo, mas que produzirá uma
detonação que não se espalhe tanto quanto as bombas antigas, para reduzir danos
colaterais.
Além disso, os EUA querem desenvolver a operacionalidade das
suas forças nucleares, reduzi-las em número, para que sejam mais fáceis de
operar. Querem contar, até 2012, com entre 1.700 e 2.200 ogivas nucleares, armas
modernas. O arsenal antigo será em parte desativado, mas não destruído. Poderá
ser reutilizado em nova conjuntura.
Embora o secretário de Estado, Collin
Powell, diga que os EUA vão continuar cumprindo o tratado que proíbe os testes
nucleares, o documento afirma que para o adequado desenvolvimento dessas novas
armas nucleares vão ser necessários testes nucleares no deserto de Nevada (NST
-- Nevada Teste Site). O documento diz: "desde 1992 os EUA não fazem testes,
cumprindo o acordo. Isto pode não ser possível no futuro".
O
documento desenvolve categorias de contingências para as quais os EUA devem
estar preparados:
- Perigo imediato: Iraque ataca Israel; Coréia do Norte ataca Coréia do Sul;
China tenta mudar militarmente o status de Taiwan.
- Perigo não imediato: emergência de uma nova e hostil coalizão militar
contra os EUA em que um ou mais de seus membros tenham armas nucleares e meios
de os lançar contra os EUA.
- Contigências inesperadas e repentinos desafios à segurança como "a crise
de mísseis em Cuba". Contemporaneamente, pode incluir uma mudança repentina de
regime de governo em que um arsenal nuclear existente caia em mãos de um grupo
hostil, ou um assalto de surpresa a depósito de armas nucleares.
- Coréia do Norte, Iraque, Irã, Síria e Líbia estão entre os países que
podem se envolver em conflito com EUA. Todos têm antiga hostilidade contra os
EUA e seus parceiros. Todos patrocinam ou dão abrigo a terroristas e têm
ativas armas nucleares.
- A China, no desenvolvimento de seus objetivos estratégicos e no processo
atual de desenvolvimento tecnológico nuclear e não nuclear, pode se envolver
em imediata ou potencial contigência de guerra contra os EUA.
- A Rússia mantém o maior arsenal nuclear vis a vis os EUA, ainda que em
parte desativado e menor que dos EUA. Afastado o conflito ideológico,
atualmente não é esperada uma situação conflitiva. Mas essa situação pode
mudar.
Ao tomar conhecimento do documento, Robert McNamara,
ex-secretário de Defesa dos EUA no tempo da Guerra contra o Vietnã, comentou: "é
inacreditável. Temo que isso possa não só provocar instabilidade estratégica,
como também gerar a proliferação nuclear. É inacreditável e perigoso".
Em
síntese: os Estados Unidos estão empenhados em uma nova corrida nuclear, agora
sem uma potência abertamente concorrente. Partem da suposição de que nas sombras
vários Estados inimigos estão produzindo armas de destruição em massa contra
eles. Estão preparando uma série de cenários de guerras potenciais em que não
abdicam do uso de armas nucleares. Esta é claramente uma mudança na situação
militar mundial. Anteriormente, as armas nucleares eram usadas como instrumento
de dissuasão. As potências se comprometiam em não ser as primeiras a usar armas
nucleares, o que criava uma situação de equilíbrio entre elas. Na medida em que
os EUA mudam de posição e assumem que podem usar armas nucleares em caráter
preventivo, as outras potências nucleares também terão que considerar essa
hipótese. A China, a Rússia, por exemplo, a partir de agora passam a ter de
contar com a possibilidade de serem atacadas com armas nucleares pelos EUA num
momento de agravamento de contradições. Como irão se defender dessa nova ameaça?
Terão que trabalhar com a hipótese de atacar primeiro ou estar prontas para
responder imediatamente. A nova política americana coloca a hecatombe nuclear
num horizonte mais visível.
* Publicado em Reportagem nº
32, de maio de 2002