Pessoal, segue artigo do Globo de ontem, falando das regras das eleições americanas, com um pequeno gancho para as eleições do Brasil, onde o autor duvida da segurança do atual sistema.

Cordialmente,
Eneida Melo


O GLOBO
Por Dentro da Notícia

Irracional e arcaico ou cultural?

Muito se tem escrito nos últimos dias sobre as ineficiências e mesmo a irracionalidade do sistema eleitoral americano. Os relatos de pessoas que não conseguem se registrar ou ter seu voto aceito abundam na imprensa brasileira. Existe até um certo ufanismo no ar devido à aparente superioridade da avançada e centralizada metodologia de voto eletrônico em nosso país quando comparada à confusa estrutura da terra do Tio Sam, em que cada estado e município tem regras próprias, por vezes conflitantes entre si. Pergunta-se freqüentemente: como podem os americanos terem um sistema tão irracional?

Como alguém que viveu e estudou nos EUA, me familiarizei com o espírito prático dos americanos e, como historiador, sei que a explicação não passa por uma suposta "irracionalidade" neste campo, mas está ligada a características culturais do desenvolvimento histórico daquele povo. Parafraseando Sérgio Buarque de Holanda, posso assegurar que o americano prático não permitiria tais "ineficiências" caso elas não refletissem posicionamentos e opções filosóficas deliberadas.

Em vista das mazelas e confusões trazidas pela falta de uniformidade no sistema de votação, por que americanos simplesmente não uniformizam as regras, criando um sistema centralizado, como no Brasil? A explicação é que esta descentralização está profundamente arraigada na psique coletiva dos EUA.

Desde a Guerra da Independência, as originais 13 colônias americanas mostraram-se ciosas de manter um alto grau de autonomia local em relação ao governo federal. É uma questão de honra para muitos manter limitações ao governo federal ou qualquer estrutura que tente uniformizar artificialmente as diversidades locais. Correta ou erradamente, uma forte corrente do pensamento político americano julga que foi exatamente por impedir uma uniformização exagerada (segundo eles) em nível federal que as liberdades locais e individuais foram tão preservadas nos EUA em comparação a outros países.

O famoso espírito antiburocrático dos anglo-saxões, por mais paradoxal que pareça, também tem dado uma contribuição para este blues do americano doido em que se tem transformado o sistema eleitoral do Tio Sam. Vimos na imprensa relatos kafkianos de americanos no exterior que não conseguem votar pelo correio devido a confusões de burocratas locais, e de pessoas que se registram para votar na rua com organizações voluntárias para depois descobrir que essas organizações, propositalmente ou não, não haviam efetivado seu registro.

Do alto de nosso sistema centralizado, eletrônico, uniformizado de votação, fica difícil não sentir um certo mal-estar ao ver essas mazelas acontecendo na soi-disant maior democracia do mundo. Entretanto, isto tem que ser relativizado. Grande parte dessa confusão provém da tentativa de tornar o processo de registro e votação o menos burocrático e mais fácil possível. Por isso existem coisas como votar pelo correio, votar antes do dia da eleição para não entrar em filas, poder se registrar para votar no meio da rua com pessoas e organizações autorizadas que passam recolhendo assinaturas para depois levar à comissão eleitoral local etc. Na verdade, estas seriam formas de facilitar a vida do eleitor que lá não é obrigado a votar.


O caso de minha esposa americana epitoma as ironias (bons e maus aspectos) do sistema eleitoral de seu país. Ela imprimiu sua cédula de votação enviada pela internet pela comissão eleitoral de seu município nos EUA e enviou o voto pelo correio. Tamanha facilidade eletrônica (levou 20 minutos tudo!), entretanto, veio depois de quase dois meses de tentativas frustradas de obter pelo correio comum lá de seu município a cédula em papel.

Quem estará com a razão? Qual dos dois sistemas, o nosso ou o deles, é melhor? A resposta não é simples. Se minha esposa enfrentou dificuldades para votar pelo correio, pelo menos ela pode votar pelo correio (no Brasil nós não temos este problema, pois ninguém pode votar pelo correio e ainda tem que justificar em trânsito). Nosso famoso voto eletrônico, que dá resultados imediatamente, mas não deixa cópias em papel, é mais "eficiente", mas será mais seguro? (para mim soa estranho dizer que o sistema de voto eletrônico do TSE é inexpugnável a fraudadores, quando hackers conseguem penetrar nos computadores do Pentágono!).

O juízo definitivo sobre que sistema é melhor não é tão fácil de se estabelecer como parece. O propósito deste artigo é chamar a atenção para o fato de que o sistema eleitoral americano está de pé daquele jeito não por uma suposta irracionalidade inercial coletiva, e sim por razões culturais e posturas filosóficas bem definidas na sociedade daquele país.

ANGELO SEGRILLO é professor de história contemporânea na UFF.

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