Do uísque com o chefe da Globo até o dia em que o PT rompeu o mandamento da
cosa nostra
César Benjamin é editor e autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998) e
Bom Combate (Contraponto, 2004)
publicado no Jornal Estado de SP 19/06/2005
Retornei do exílio em 1978, antes da Anistia, animado com a retomada do
movimento operário e o fortalecimento do movimento democrático no Brasil.
Como muitos da minha geração, dediquei meus melhores esforços, nos anos
seguintes, à construção do Partido dos Trabalhadores. Fui membro da direção
nacional. A primeira eleição presidencial direta depois do regime militar,
em 1989, encontrou-me na linha de frente. Chorei o trauma de uma derrota
politicamente fraudulenta. Nos dias seguintes ao resultado, junto com cerca
de 6 mil militantes e simpatizantes do PT, fui para a porta da Rede Globo,
no Rio de Janeiro, protestar contra a edição do último debate entre Lula e
Collor, a exibição de seqüestradores do empresário Abilio Diniz com
camisetas do PT e a manipulação de uma mulher pobre e ressentida, que havia
recebido dinheiro para macular a vida pessoal do nosso candidato. Viajei em
seguida para São Paulo, onde encontrei Lula. Tivemos um diálogo curto, que
nunca esqueci. Lula me disse: "Cesinha, sabe quem me ligou nesses dias? O
Alberico, da Globo. Jantei com eles anteontem. Derrubamos litros de uísque.
Eu pedi que não se preocupassem, que estava tudo bem entre nós. Não vou
brigar com a Globo, não é, Cesinha?"
Apesar dos anos passados, a citação é textual. Fiquei muito perturbado ao
saber, pelo próprio Lula, que, no mesmo dia em que a militância do PT
protestava na rua, ele "derrubava litros de uísque" com a direção da
emissora que, a nosso ver, e na visão dele também, o havia agredido e
humilhado, reiteradamente, nas semanas anteriores. A conversa serviu, para
mim, como um sinal amarelo sobre o caráter do nosso líder. Mas sua imagem só
desmontou definitivamente em 1994, quando bancos e empreiteiras começaram a
financiar pesadamente o PT, à revelia da direção nacional e da militância,
mantidas na ignorância dos novos esquemas paralelos.
Começou então a ascensão de uma "esquerda de negócios", fenômeno novo em
nossa história. Incentivados e promovidos a cargos de direção, os
"operadores" ajudaram a consolidar o poder da Articulação no PT. As relações
internas foram fortemente contaminadas pela circulação de dinheiro, em geral
para financiar campanhas e garantir lealdades. A honra de pessoas e o
cadáver de Celso Daniel ficaram no meio do caminho, mas Lula chegou aonde
queria chegar. Depois de vários anos de sucessivas demonstrações de
vassalagem, foi ungido. (Brizola, que enfrentou a Globo em defesa de Lula,
foi destruído.)
O PT levou para a Presidência da República as mesmas práticas testadas e
aprovadas na luta interna, mas agora em escala muito ampliada. Os operadores
passaram a operar freneticamente, aliás em ambiente propício. O que já foi
divulgado é uma pequena fração dos malfeitos. Lula encontrou pronta uma
forma espúria de organizar o poder político da Nação e, em vez de lutar para
alterá-la, como era sua obrigação política e moral, adaptou-se a ela. Forças
de natureza supranacional, representantes dos nossos credores, continuaram a
ocupar o Banco Central e o Ministério da Fazenda; a partir dessas posições,
manejando as políticas monetária, cambial e fiscal, bem como a execução do
Orçamento, elas controlam e subordinam a ação de todo o Estado brasileiro. O
Legislativo continuou a ser o espaço onde se expressam demandas de natureza
subnacional, negociadas caso a caso, na margem, de acordo com a necessidade
de composições políticas em cada momento. O aparelho de Estado continuou a
ser tratado como butim. E o povo pobre continuou a receber as migalhas das
políticas compensatórias. Nesse arranjo, nenhuma instância cuida seriamente
dos interesses da Nação, que por isso permanece à deriva. É assim que se faz
política no Brasil.
A Presidência da República, porém, é uma instância muito complexa, para onde
convergem todas as demandas e interesses. Na ausência de um projeto
qualquer, inexiste um eixo ordenador das negociações, de modo a impor
limites aos apetites de cada parte. Lula e o PT submergiram na política do
varejo, atendendo ou deixando de atender a cada interesse conforme as
pressões do momento, cada vez mais ponderadas pela grande meta da reeleição,
a única que de fato os interessava. Com o tempo, o governo foi se tornando
inconfiável para todos. E cometeu o erro fatal: deixou de honrar a palavra
empenhada, rompendo assim o primeiro mandamento de qualquer cosa nostra. O
deputado Roberto Jefferson deu o troco.
Fala-se agora em reforma política. É mais um blefe. O problema não é de
novas regras formais, feitas, como as outras, para ser burladas, mas de
conteúdo. O esquema atual é sustentado por uma aliança paradoxal, que vem
sendo renovada a cada eleição, dos mais ricos, que comandam sempre, com os
mais pobres, que apenas votam a cada quatro anos. Essa aliança tem como alvo
preferencial o mundo do trabalho e suas instituições. Os direitos associados
ao trabalho, jamais universalizados, são denunciados como privilégios, num
país em que os verdadeiros privilegiados são invisíveis à grande massa da
população. O ressentimento popular contra a desigualdade é usado para
destruir as ilhas de cidadania, que deveriam ser justamente os pontos de
Arquimedes onde a Nação poderia apoiar suas alavancas para desenvolver-se,
puxando os que ficaram para trás.
Collor inaugurou essa aliança no terreno simbólico. Fernando Henrique
deu-lhe seqüência, utilizando-se do Plano Real, que permitiu uma
convergência momentânea de interesses tão díspares. Hoje, Lula é quem faz a
ligação, que agora é simbólica (pelas origens dele) e material: oferece por
ano R$ 150 bilhões em juros aos mais ricos e R$ 10 bilhões, pulverizados, em
Bolsa-Família aos mais pobres. Cumpre bem esse papel. Não será atingido por
nenhuma investigação. Está blindado. Mas é refém.
Triste destino, o do PT: em 1989, no discurso e na prática, apontava que a
aliança correta, aquela capaz de retirar a Nação da crise, tem de ocorrer
entre o mundo do trabalho e da cultura, de um lado, e os mais pobres, de
outro, com a subseqüente reforma de instituições e costumes. Em 2002,
tornou-se um instrumento da aliança espúria que mantém o Brasil em crise
crônica. Continuará a existir como uma legenda a mais na política
institucional, cada vez mais distanciada da vida do povo. Tudo se tornou
melancólico e patético para quem, algum dia, sonhou em mudar o País. Estamos
assistindo ao fim de um ciclo na existência da esquerda brasileira, um ciclo
que não deixa legado teórico, político ou moral. Resta saber como e quando
ela se recomporá. Seja como for, o PT pertence ao passado.
enviada por Stella
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