Leia trecho de A Viagem do Elefante, novo livro de Saramago

A épica viagem do elefante Salomão nasceu na imaginação do escritor
português José Saramago em 1999, mas só tomou forma como livro no ano
passado, quando ele esteve entre a vida e a morte. A Viagem do Elefante
chega nesta segunda-feira (3) às livrarias, em lançamento da Companhia das
Letras.


Livro foi simultâneo à doença de Saramago
Os leitores terão tempo para saborear a leitura até a chegada do autor ao
Brasil, no final do mês, quando promove seu lançamento. No dia 27, Saramago
participa de um encontro com os fãs no Sesc Pinheiros. Na mesma época, será
homenageado pela Academia Brasileira de Letras, em cerimônia realizada no
Rio de Janeiro. E, finalmente, cederá objetos e manuscritos para uma
exposição a ser aberta no Instituto Tomie Ohtake.

Meses atrás, o próprio Saramago não conseguia imaginar que lançaria
mundialmente o livro no Brasil. Ele sofreu uma grave doença respiratória, da
qual temeu não escapar. "Escrevê-lo não foi um passeio ao campo: Saramago
lançou-se a esta tarefa quando estava incubando uma doença que tardou meses
a deixar-se identificar e que acabou por manifestar-se com uma virulência
tal que nos fez temer pela sua vida. Ele próprio, no hospital, chegou a
duvidar que pudesse terminar o livro", escreve Pilar del Río, com quem
Saramago é casado.

O texto de Pilar figura no blog do escritor (http://blog.josesaramago.pt),
no qual ele vem registrando suas impressões a respeito da recepção do livro
e também de O Ensaio Sobre a Cegueira, versão cinematográfica dirigida por
Fernando Meirelles. Pilar conta que, aos olhos do escritor, o livro de 262
páginas não lhe pareceu um romance — daí tratá-lo como conto.

A história se baseia em um fato verídico, ocorrido em 1551, quando dom João
III, então rei de Portugal, decidiu presentear o arquiduque da Áustria com
um elefante indiano. Organizou-se, então, uma comitiva formada por homens e
bois que acompanhou o animal de Lisboa até seu destino final, Viena. E, como
quase ninguém conhecia um elefante, sua passagem por vilas e aldeias
provocava festa e espanto.

A partir desse fato inusitado, Saramago utiliza seu tradicional humor e
pregação humanista para mostrar a habitualmente difícil relação do homem
entre si e também com os animais. Uma solidariedade compassiva, como já
observou Saramago.

A idéia de A Viagem do Elefante surgiu quando o escritor visitou a Áustria,
há quase dez anos, e almoçou, por acaso, em um restaurante de Salzburgo
chamado O Elefante. Na narrativa, Saramago uniu figuras históricas
verdadeiras com personagem criados em sua imaginação.

"Estas são pessoas que os membros desta caravana encontram na sua viagem, e
com quem partilham perplexidades, esforços e a harmoniosa alegria de um
telhado sobre as suas cabeças", disse, em entrevista à imprensa espanhola.

Mesmo temendo não concluir o livro por causa do agravamento da doença,
Saramago conta que não alterou a história original. "Os anos não passam em
vão. Não foi um passeio no jardim. Algo do que vivi terá passado para o que
escrevi. Mas, de qualquer forma, os elementos essenciais da história não
mudaram", disse ele.

O autor revelou sua felicidade e alívio por ter concluído o trabalho.
"Escrevi os meus três últimos livros no mais deplorável estado de saúde, que
não é de todo o mais favorável para idéias felizes. Prefiro dizer: se tens
que escrever, escreverás." Um entrevistador lhe pergunta: "Pode a literatura
salvar a nossa vida?". E Saramago rebate: "Não como um medicamento, mas é
uma das fontes mais ricas onde o espírito pode beber."

Leia abaixo trecho de Leia trecho de A Viagem do Elefante


Não há vento, porém a névoa parece mover-se em lentos turbilhões como se o
próprio bóreas, em pessoa, a estivesse soprando desde o mais recôndito norte
e dos gelos eternos. O que não está bem, confessemo-lo, é que, em situação
tão delicada como esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa
para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade. A esta hora
os companheiros da caravana já deram com certeza pela falta do ausente, dois
deles declararam-se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso
náufrago, e isso seria muito de agradecer se não fosse a fama de poltrão que
o iria acompanhar para o resto da vida, Imaginem, diria a voz pública, o
tipo ali sentado, à espera de que aparecesse alguém a salvá-lo, há gente que
não tem vergonha nenhuma. É verdade que tinha estado sentado, mas agora já
se levantou e deu corajosamente o primeiro passo, a perna direita adiante,
para esconjurar os malefícios do destino e dos seus poderosos aliados, a
sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para
menos, pois o chão deixara de poder ver-se, como se uma nova maré de
nevoeiro tivesse começado a subir. Ao terceiro passo já não consegue nem
sequer ver as suas próprias mãos estendidas à frente, como para proteger o
nariz do choque contra uma porta inesperada. Foi então que uma outra ideia
se lhe apresentou, a de que o caminho fizesse curvas para um lado ou para o
outro, e que o rumo que tomara, uma linha que não queria apenas ser recta,
uma linha que queria também manter-se constante nessa direcção, acabasse por
conduzi-lo a páramos onde a perdição do seu ser, tanto da alma como do
corpo, estaria assegurada, neste último caso com consequências imediatas. E
tudo isto, ó sorte mofina, sem um cão para lhe enxugar as lágrimas quando o
grande momento chegasse. Ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na
aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si mesmo, mas, perdido
o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais como se estivesse
num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou melhor resposta
que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a
sorte, qualquer deles ou todos juntos, trouxessem os abnegados voluntários
ao minúsculo palmo de terra em que se encontrava, como uma ilha no mar
oceano, sem comunicações. Com mais propriedade, uma agulha em palheiro. Ao
cabo de três minutos, dormia. Estranho animal é este bicho homem, tão capaz
de tremendas insónias por causa de uma insignificância como de dormir à
perna solta na véspera da batalha. Assim sucedeu. Ferrou no sono, e é de
crer que ainda hoje estaria a dormir se salomão não tivesse soltado, de
repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cujos ecos
deveriam ter chegado às distantes margens do ganges. Aturdido pelo brusco
despertar, não conseguiu discernir em que direcção poderia estar o emissor
sonoro que decidira salvá-lo de um enregelamento fatal, ou pior ainda, de
ser devorado pelos lobos, porque isto é terra de lobos, e um homem sozinho e
desarmado não tem salvação ante uma alcateia ou um simples exemplar da
espécie. A segunda chamada de salomão foi mais potente ainda que a primeira,
começou por uma espécie de gorgolejo surdo nos abismos da garganta, como um
rufar de tambores, a que imediatamente se sucedeu o clangor sincopado que
forma o grito deste animal. O homem já vai atravessando a bruma como um
cavaleiro disparado à carga, de lança em riste, enquanto mentalmente
implora, Outra vez, salomão, por favor, outra vez. E salomão fez-lhe a
vontade, soltou novo barrito, menos forte, como de simples confirmação,
porque o náufrago que era já deixara de o ser, já vem chegando, aqui está o
carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os pormenores
porque as coisas e as pessoas são como borrões indistintos, outra ideia se
nos ocorreu agora, bastante mais incómoda, suponhamos que este nevoeiro é
dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante,
apesar de grossa, que não há tigre que lhe meta o dente, os nevoeiros não
são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça
uma celada bem ajustada. A um soldado que passa, levando o cavalo pela
reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários já regressaram da missão de
salvamento e resgate, e ele respondeu à interpelação com um olhar
desconfiado, como se estivesse diante de um provocador, que havê-los já os
havia em abundância no século dezasseis, basta consultar os arquivos da
inquisição, e responde, secamente, Onde é que você foi buscar essas
fantasias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro
destes a única atitude sensata foi a que tomámos, manter-nos juntos até que
ele decidisse por si mesmo levantar-se, aliás, pedir voluntários não é muito
do estilo do comandante, em geral limita-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em
frente, marche, o comandante diz que, heróis, heróis, ou vamos sê-lo todos,
ou ninguém. Para tornar mais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado
içou-se rapidamente para cima do cavalo, disse até logo e desapareceu no
nevoeiro. Não ia satisfeito consigo mesmo. Tinha dado explicações que
ninguém lhe havia pedido, feito comentários para que não estava autorizado.
No entanto, tranquilizava-o o facto de que o homem, embora não parecesse ter
o físico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo
menos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para ajudar a empurrar
e puxar os carros de bois nos passos difíceis, gente de poucos falares e, em
princípio, escassíssima imaginação. Em princípio, diga-se, porque ao homem
perdido no nevoeiro imaginação foi o que pareceu não lhe ter faltado, haja
vista a ligeireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários
que deveriam ter ido salvá-lo. Felizmente para a sua credibilidade pública,
o elefante é outra coisa. Grande, enorme, barrigudo, com uma voz de
estarrecer os tímidos e uma tromba como não a tem nenhum outro animal da
criação, o elefante nunca poderia ser produto de uma imaginação, por muito
fértil e dada ao risco que fosse. O elefante, simplesmente, ou existiria, ou
não existiria. É portanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a
energia com que usou a salvadora trombeta que deus lhe deu, se este sítio
fosse o vale de josafá teriam ressuscitado os mortos, mas sendo apenas o que
é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém (quem)
esteve a ponto de morrer de frio e abandono, diremos, para não perder de
todo a trabalhosa comparação em que nos metemos, que há ressurreições tão
bem administradas que chega a ser possível executá-las antes do passamento
do próprio sujeito. Foi como se o elefante tivesse pensado, Aquele pobre
diabo vai morrer, vou ressuscitá-lo. E aqui temos o pobre diabo
desfazendo-se em agradecimentos, em juras de gratidão para toda a vida, até
que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para
que você lhe esteja tão agradecido, Se não fosse ele, eu teria morrido de
frio ou teria sido comido pelos lobos, E como conseguiu ele isso, se não
saiu daqui desde que acordou, Não precisou de sair daqui, bastou-lhe soprar
na sua trombeta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que me
salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salomão, sou eu, que para
isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter
ouvido um barrito, Um barrito, não, os barritos que estas orelhas que a
terra há-de comer ouviram foram três. O cornaca pensou, Este fulano está
doido varrido, variou-se-lhe a cabeça com a febre do nevoeiro, foi o mais
certo, tem-se ouvido falar de casos assim, Depois, em voz alta, Para não
estarmos aqui a discutir, barrito sim, barrito não, barrito talvez, pergunte
você a esses homens que aí vêm se ouviram alguma coisa. Os homens, três
vultos cujos difusos contornos pareciam oscilar e tremer a cada passo, davam
imediata vontade de perguntar, Onde é que vocês querem ir com semelhante
tempo. Sabemos que não era esta a pergunta que o maníaco dos barritos lhes
fazia neste momento e sabemos a resposta que lhe estavam a dar. Também não
sabemos se algumas destas coisas estão relacionadas umas com as outras, e
quais, e como. O certo é que o sol, como uma imensa vassoura luminosa,
rompeu de repente o nevoeiro e empurrou-o para longe. A paisagem fez-se
visível no que sempre havia sido, pedras, árvores, barrancos, montanhas. Os
três homens já não estão aqui. O cornaca abre a boca para falar, mas torna a
fechá-la. O maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a
encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se
é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar
aquele maravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de
repente desapareceu da vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopeias
providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do
sujeito com todos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas.
Plof.

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