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 Cidade alagada: chuvas de verão, classe e estado no Rio de Janeiro
1966-1967





Em janeiro de 1966 a pior tempestade do século paralisou o Rio de Janeiro.
Quase 250 mm de chuva caíram sobre a cidade em menos de 12 horas, inundando
suas artérias principais. Deslizamentos de terra nas favelas causaram mais
de 140 mortes. Os cariocas enfrentaram racionamento de gás, energia e água,
contaminada por esgoto transbordando das galerias de águas pluviais. Até o
Carnaval ficou ameaçado, e quase não saiu naquele ano.

As chuvas de 1966 evidenciam a sobreposição das políticas locais e
nacionais. O governo da cidade do Rio de Janeiro, ou Estado da Guanabara,
era um símbolo nacional de resistência contra a ditadura militar, mas também
era o alvo mais provável da justa ira da população. As enchentes foram
também um poderoso alerta sobre a vulnerabilidade do Rio para as chuvas de
verão, especialmente para a camada mais pobre dos seus quatro milhões de
habitantes. Seja nas favelas empoleiradas nos morros, ou espalhadas nas
planícies das margens da Baía de Guanabara, os pobres do Rio eram as
principais vítimas das chuvas anuais.

Minha pesquisa, ainda em estágio inicial, sugere que as chuvas de verão do
Rio de Janeiro se tornaram, após 1966, um elemento constante no panorama
político. Chuvas em 1970, 1980 e 1988, ainda que menos impressionantes em
relação ao volume de águas, provocaram apaixonados debates sobre a
responsabilidade do governo em prevenir desastres e remediar suas
conseqüências. A pesquisa propõe entender como os chamados desastres
naturais, e em particular as tempestades de verão do Rio de Janeiro,
calamitosos que sejam, eram vistos pela população e pelo Estado como
momentos privilegiados de negociação para suas necessidades e seus projetos
na criação do espaço urbano.

Este trabalho se insere numa historiografia crescente sobre o impacto de
desastres naturais na América Latina. Trabalhos recentes sobre El Niño e as
secas no século XIX, ou os terremotos em Lima colonial, mostram que, se por
um lado, calamidades deixam uma marca profunda na memória nacional/regional
como momentos excepcionais, por outro lado evidenciam as fragilidades
estruturais das sociedades e instituições latino-americanas em sua relação
com o meio físico.

No caso do Rio de Janeiro, a água sempre foi um problema crítico para a
cidade, tanto na escassez quanto no excesso. Secas no século XIX convenceram
D. Pedro II da urgência de proteger os mananciais do maciço da Tijuca,
tomado por fazendas de café – e daí surge o projeto de reflorestamento da
Floresta da Tijuca, por exemplo. Mas secas, que se arrastam por semanas
antes de serem identificadas claramente como calamidades, carecem da
dramaticidade das chuvas repentinas de verão, que tudo arrastam de um dia
para o outro. Cronistas e viajantes testemunham vários destes momentos
dramáticos de enchentes desde o século XVI. Sejam como simples “cabeças
d’água”, rios que transbordavam do seu leito, ou as mais ameaçadoras
combinações de ressacas, marés altas, as chuvas permitiam que pântanos e
lagoas retomassem a parte baixa da cidade, um espaço conquistado com
demorados e custosos aterros. A partir da década de 1860, a combinação de
chuvas e epidemias de febre amarela nos verões cariocas tornou a cidade
indesejável para a elite carioca, que se refugiaria na serra de Petrópolis –
se as estradas não fossem interrompidas pelas chuvas.

Se chuvas são fenômenos naturais, enchentes são fenômenos sociais. A partir
do século XX, o impacto das enchentes se torna mais evidente no cotidiano da
cidade. A cidade moderna, com suas ruas pavimentadas, prédios, concreto e
asfalto, absorvia menos as águas pluviais do que a terra batida, os
manguezais e as florestas que a precederam. E se chuvas normais já saturavam
as galerias pluviais, chuvas excepcionais eram sinal de desastre. A
população vivia ansiosa o início de cada ano, temendo as águas de janeiro,
fevereiro ou março. De fato, chuvas excepcionais ocorreriam a cada cinco ou
dez anos, de 1906 a 1962. Os pontos críticos de drenagem eram sempre os
mesmos, os deslizamentos comuns, com ocasionais perdas de vidas humanas.
Normalmente, os primeiros 30 minutos de uma tempestade eram decisivos para
distinguir um simples temporal de um desastre urbano. Chuvas menos intensas,
mas contínuas e além da capacidade de absorção do solo construído, podiam
ter efeitos similares.

Finalmente, em 11 de janeiro de 1966, uma tempestade violenta atingiu a
cidade, As chuvas fortes e letais continuaram por mais uma semana, e
provocaram o total colapso do sistema de transporte, assim como um “apagão”
elétrico quase completo. Como se não bastasse, no ano seguinte novas chuvas,
em janeiro e fevereiro de 1967, igualmente excepcionais em dimensões,
causaram mais de 100 mortes no Rio de Janeiro e traumatizaram a cidade.
A história das enchentes no Rio de Janeiro obviamente não se interrompe por
aqui. Enchentes catastróficas na década de 70 ocorreram com intervalos
menores, e os deslizamentos e alagamentos de ruas lembravam a população das
enchentes de 66 e 67. Em 1981, o Rio recebeu em um único dia de verão 15% da
precipitação média anual – resultando em completo caos na cidade. Mas mesmo
quando as chuvas eram menos intensas, o dano à cidade era considerável e a
Cidade Maravilhosa sofreu diversas enchentes notáveis durante as décadas de
80 e 90.

Como vimos, chuvas fortes de verão são regra e não exceção no Rio de
Janeiro. Então, por que estudar as chuvas de 1966/67? Porque embora as
chuvas pós-66/67 não tenham sido mais fortes nem mais freqüentes que estas,
as conseqüências destas chuvas na cidade urbanizada de forma desigual foram
cada vez mais críticas, e a população passa a perceber enchentes de uma
forma diferente do que antes de 66/67.

Enchentes na Baía de Guanabara costumam atingir três áreas vulneráveis: as
planícies da Baixada Fluminense, com um sistema de drenagem precário em uma
área naturalmente pantanosa; os aterros próximos à Baía, com grandes favelas
em palafitas ou não, e as favelas dos morros desflorestados, frequentemente
localizadas próximas a bairros elegantes de classe média e alta.

Desabamentos nas favelas, na topografia muito particular do Rio de Janeiro,
também atingiam os bairros mais ricos. O Rio é uma cidade segregada, mas é
um tipo de segregação em que os pobres tomaram os morros, enquanto os ricos
ocuparam as áreas baixas, próximas às praias. Ainda que socialmente
distantes, praias e morros estão geograficamente próximos. Então,
desabamentos nos morros significavam que esta segregação, precária mas de
facto, era obliterada, e a vulnerabilidade habitacional dos pobres
literalmente invadia as áreas mais ricas. Para uma cidade com 3,5 milhões de
habitantes, na qual cerca de 600 mil viviam em favelas em meados da década
de 60, esta era uma preocupação real.

Esta ruptura das barreiras sociais ocorreu literalmente em 1966, quando um
deslizamento de terra, arrastando casebres e pedras de um morro, destruiu um
prédio de classe média em Laranjeiras. Era só o começo. Saques,
racionamento, colapso dos serviços de emergência (ou uma clara imagem de sua
precariedade), lembravam aos moradores cariocas que a chuva era o menor dos
seus problemas.

A chuva também caía em solo fértil para intrigas políticas. O recém-eleito
governador Negrão de Lima era conhecido opositor ao regime militar. Seu
antecessor no governo da Guanabara fora Carlos Lacerda, com forte influência
sobre os jornais cariocas, que seriam a principal arena para o debate sobre
o ônus político das chuvas de 66/67. Embora as chuvas de 66 não pudessem ser
atribuídas a Negrão de Lima, quando elas se repetem em 67, periódicos como o
Jornal do Brasil usam as enchentes incessantemente para acusar o governador
de incompetência.

Mas se governo e oposição se digladiavam para incluir as chuvas na agenda
política, através dos jornais, a população descobre em meio à calamidade um
canal inesperado para antigas e mais amplas reivindicações. O temor de
remoções forçadas, as queixas de abandono pelo poder público, a insegurança
pela violência nas favelas, transparecem nas entrevistas dos flagelados das
enchentes, e contrastam com as tentativas do governo de responder ao
problema com relatórios técnicos, pontuais e específicos. Este é o debate
que se inicia nas chuvas de 66/67, e que acompanha as enchentes das décadas
de 80 e 90, com constantes referências às chuvas anteriores. As enchentes de
66/67 criam um marco; se não foram estritamente as mais fortes do século, os
meios de comunicação as fixaram na memória da cidade, pelo próprio fato de
usá-las como referência.

Nossa pesquisa planeja responder a três perguntas principais: primeiro, em
que medida as chuvas se tornaram parte do cotidiano da cidade, um desastre
esperado e temido? Segundo, como as chuvas de 66/67 se inserem na memória da
cidade, estabelecendo a enchente não como um desastre natural, mas como
incapacidade do Estado de cumprir seu papel? E, terceiro, de que forma os
diversos setores da população – governo, flagelados, igreja, setores
técnicos – negociam através da imprensa os significados das enchentes, e
lutam por seus próprios projetos de ocupação do espaço político e do espaço
urbano.

Em parte, estas questões são específicas para a história urbano-ambiental do
Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, elas discutem processos mais complexos das
relações do estado, cidade e sociedade. No momento de crise, como no caso de
enchentes, as contradições, fragilidades e alianças destas relações se
tornam mais visíveis e explícitas. Ao estabelecer o foco no Rio de Janeiro
como um espaço ao mesmo tempo político e ecológico, com suas dinâmicas de
absorção e saturação tanto de intrigas políticas como de águas pluviais,
espero propor novas formas de compreender a cidade na história ambiental.



Lise Sedrez | California State University | lsed...@csulb.edu


-- 
(^_^)

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