DIREITO PENAL
A culpabilidade e limites da pena no Direito Brasileiro


O juízo de culpabilidade assume importância, de forma a imputar ao condenado a pena mais adequada
Alamiro Velludo Salvador Netto

"A ação do homem não é um único ato, mas todos os atos juntos. Aqui, o conceito que nos pode orientar é do indivíduo exatamente porque exprime a idéia de indivisibilidade. Um homem se diz indivíduo por significar, em uma palavra, que não se pode fazer a sua história por parte. Aquilo que o homem quis não se pode conhecer senão através daquilo que o homem é; aquilo que o homem é se conhece apenas por toda a sua história."

(CARNELUTTI, Francesco – As Misérias do Processo Penal – Editora Conan, 1o. edição, 1995, p.50)

"Pouquíssimos, porém, examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais, parte tão importante quão descurada da legislação em quase toda a Europa. Pouquíssimos os que , remontando os princípios gerais, eliminaram os erros acumulados durante séculos, refreando, ao menos, com a força que só possuem as verdades conhecidas, o demasiado livre curso do mal dirigido poder, que deu até hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade."

(BECCARIA, Cesare – Dos delitos e das penas – Ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., São Paulo, 1997.)

A pena imposta àqueles que cometem atos tidos como crimes sempre significou um claro reflexo do modelo sócio-econômico e da forma de Estado em que se desenvolve o modelo sancionador (1). Assim, ao analisarmos um Estado estaremos naturalmente verificando o seu conceito de pena dentro de uma lógica historicamente concebida e, conseqüentemente, adentrando na perspectiva normativa acerca do conceito da culpabilidade penal.

Muito comum na doutrina penal a célebre passagem de Franz Von Liszt ao afirmar que "pelo aperfeiçoamento da teoria da culpabilidade mede-se o progresso do Direito Penal". Através de colocações nesse sentido, percebemos a vasta importância da culpabilidade e seu conceito dentro da própria definição do crime, uma vez que o juízo de culpabilidade é o ponto primordial para a fundamentação, limitação e garantia da não aplicação da norma penal em casos de responsabilidade objetiva. Os elementos básicos que preenchem o conteúdo da culpabilidade, a saber, imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta conforme o Direito, são instrumentos muito eficazes na manipulação da aplicabilidade da pena e, naturalmente, na consecução dos fins por esta vislumbrados.

O juízo de censura ou culpabilidade assume, pois, importância crucial dentro da órbita da aplicação e fixação da reprimenda penal, de forma a imputar ao condenado a pena mais adequada, conforme mais minuciosa for a verificação de sua culpabilidade em face do ato delituoso cometido.

Dentro da ciência penal, diversas foram e são as formas de aferição da culpabilidade, posto que também são diversas as teorias ao longo da história, sendo algumas delas aplicadas no ordenamento penal brasileiro. Dessa forma, o limite à pena exercido pela culpabilidade, de forma a impedir que a sanção seja abusiva ou insuficiente em face de seu próprio conceito altera-se tanto quanto for alterado o conteúdo da culpabilidade, modificando a correlação do binômio culpa-pena. Em nosso país, as escolas diversas que nortearam o Código de 1940 e a reforma da Parte Geral de 1984, o clamor punitivo da sociedade, o aumento vertiginoso do crime, faz com que bastante difícil seja a verificação diáfana do conceito de culpabilidade escondido por detrás do art. 59 do vigente Código Penal e de seu real papel limitador da pena.

A Constituição da República Federativa do Brasil prescreve em seu art. 5º, inciso XLVI, que "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes..."

O princípio basilar da Ciência do Direito Penal, que versa sobre a individualização da pena, conquista fundamental dos humanitários no séc. XVIII, remete-nos a séria reflexão acerca exatamente do conteúdo da culpabilidade, e de seu papel individualizador e limitador da pena ao homem concreto que se coloca sob a égide do Poder Judiciário.

O volume excessivo de processos que tramitam diariamente nas varas criminais em todo o país; o número reduzido de magistrados para o devido cumprimento da tarefa judicante; o escasso tempo que todos nós dispomos para o cumprimento dos compromissos impostos pela vida moderna; o aumento vertiginoso e diário da criminalidade; a frieza dos criminosos em atentar contra os cidadãos; o clamor social cada vez mais impiedoso e exigente de condenações draconianas; o crescimento do número de figuras típicas na órbita penal; e os novos rumos seguidos pela Ciência Penal; são os principais aspectos que nos permitem verificar a forma confusa como é efetuada a individualização penal, bem como o juízo de culpabilidade e, evidentemente, culminando no desacordo com a boa doutrina penal de valoração e respeito à pessoa humana e sua condição de réu individualmente concebido, ou seja, portador de valores próprios, ator de uma história peculiar de vida, detentor de sonhos e decepções pessoais.

Ao analisarmos o conceito utilizado em nosso país no instante da aplicabilidade do elemento do crime culpabilidade, realizando o cotejo da definição traçada pela ciência penal moderna com as finalidades essenciais da pena constitucionalmente previstas, alcançamos a demonstração da frieza maquinal com que julgamos cidadãos, desprezando questões como consciência (potencial) da ilicitude, poder agir conforme o direito e juízo de reprovabilidade ou censura, elementos de suma importância no instante de mensurarmos o montante da reprimenda penal em sua primeira fase (art. 59 do Código Penal).

Bastante aceita na doutrina a divisão básica e tripartite do crime nos elementos tipicidade, antijuricidade e culpabilidade. Interessantíssimo se apresenta o elemento que mais vinculado está, não à conduta humana em si, mas aos objetos psíquicos que a motivam, permeiam e explicam.

Ao longo dos tempos, embora a tripartição assim tivesse seus elementos denominados na maioria das teorias (tipicidade, antijuricidade e culpabilidade), infinitas foram as discussões a fim de elucidar qual o exato conteúdo de cada um deles. Existem aqueles que fizeram questão de dividi-las de forma bastante estanque e delimitada, bem como outras teorias foram elaboradas no sentido de fundir tais elementos, até então divididos, em um único juízo de verificação (2).

Encontramo-nos, neste estudo, restritos ao elemento mais ligado ao homem em sua individualidade, seu subjetivismo, ou seja, a culpabilidade. "...el juicio de culpabilidad ha estado predominantemente referido al hecho de que el sujeto ha llevado a cabo, a un hecho al cual él se encuentra vinculado personalmente bien sea por dolo o porque ha sido el producto de su imprudência, en definitiva , a un hecho del que se puede decir con propriedad que es su hecho porque él ha sido el que se le dado sentido y significación y, en él, el sujeto al reflejado su personalidad social."(3) Assim, exatamente essa reflexão da personalidade social do agente que deve ser deixada clara através da aplicação do conceito da culpabilidade, a fim de que possamos bem delimitar a pena a que o condenado será merecedor.

Em face desta função limitadora da culpabilidade, diversos entendimentos surgiram, desde a responsabilidade sem culpa, o afloramento do princípio "nullum crime sine culpa", a concepção psicológica da culpabilidade, a concepção normativa da culpabilidade, e, finalmente, a teoria finalista da ação ao que se refere aos elementos componentes da culpabilidade no entender de seus realizadores, partindo da elaboração de Welzel.

Entendemos que a discussão mais interessante a ser travada é sobre a culpabilidade modelada em torno de um direito penal do fato ou do autor. Bem verdade, é que a legislação brasileira adotou a corrente que abarca o direito penal do fato, porém, o próprio Francisco de Assis Toledo, crítico bastante assíduo de concepções como culpabilidade pela conduta da vida, do caráter ou da personalidade do agente, simplesmente, não nega a importância de analisarmos também a figura do agente, ou seja, verificarmos as individualidades dos autores de delitos. Asseverando que a legislação brasileira outorga inteira predominância ao direito penal do fato, faz questão, contudo, de salientar, ipsis literis: "Não obstante, será fácil também de ver que essa mesma legislação não despreza totalmente o autor, pois sua personalidade e antecedentes (a habitualidade e a tendência para o crime, a primariedade ou a reincidência etc.) são considerados, dentro do quadro da punibilidade do fato, no momento da quantificação da pena."(4)

Observamos assim, a intensa problematização que nos colocamos envolto, uma vez que as decisões brasileiras, se efetivamente levam em conta a reincidência e demais causas de aumento para de forma mais severa apenar o criminoso, pouco levam em consideração a subjetividade do agente, elemento precípuo da culpabilidade e expressamente declinado no art. 59 do Código Penal, prescrevendo, detalhadamente, os passos necessários para o primeira etapa de fixação da pena. Desprezar, portanto, esses passos fundamentais, desrespeitando a culpabilidade como limitadora punitiva, significa romper com a própria lógica da função punitiva do Direito Penal.

Percebemos, então, que o Direito Penal, o qual tem com o ser humano individualmente concebido seu diálogo mais importante, pouco analisa em nosso país no momento de efetivar sua represália, a individualidade de cada um, os diferentes conjuntos de valores, formas de viver, formações diversificadas de caráter e personalidade, resguardando ainda hoje a índole naturalística-positivista dos anos 40, baseada no pensamento de Lombroso, Ferri e Garófalo. Tal fato torna-se ainda mais indesejado em um país como o Brasil, onde assumir essa prática, significa desprezar as divergências culturais regionais, a desigualdade social, a diferença de condutas entre moradores de favelas e de condomínios fechados, portadores de realidades sociais divergentes e contraditórias, fazendo com que a aplicação da pena corresponda, pois, não à implementação das finalidades que esta deve ter, mas em simples mecanismo de exclusão do criminoso da vida em sociedade sem a menor perspectiva de reintegração ao convívio com seus semelhantes, no maior exemplo do pensamento de Ferri, ou seja, a pena como profilaxia social.

Ora, atualmente, estamos deparados com um Direito Penal que se utiliza da elevação de objetos vagos e indefiníveis como a economia, meio ambiente, mercado exterior, à altura de bens jurídicos relevantes para a tutela penal como desculpas circunstânciais para a excesssiva criminalização, inclusive, de condutas meramente de perigo, prestando-se assim para prevenção desesperada de atos humanos indesejados, dentro de uma prática maquiavélica (5). Além disso, deixa de ser a enaltecida "ultima" para tornar-se a famigerada "prima ratio", ganhando uma carga muito mais simbólica que efetiva, deslegitimando-se cada vez mais. Dessa forma, não podemos realmente desejar que Juízes e aplicadores de punições percam longo tempo verificando minuciosamente elementos, muitas vezes complexos e de difícil aferição, para atribuir penas justas a indivíduos excluídos da sociedade e que não interessam para a lógica do mercado, nem sequer apresentam perspectivas se devidamente ressocializados e inseridos no seio da vida em comunidade.

Faz-se salutar, portanto, um estudo minucioso sobre a culpabilidade, resgatando sua leitura como um conceito humanístico de limitação das penas impostas aos indivíduos que se enveredam para prática criminosa.

Dentro deste conturbado contexto traçado, pretendemos impingir esforços para perceber, de forma bastante delimitada, a distância existente entre o aprimorado conceito de culpabilidade na Ciência Penal, e o presente no sistema penal pátrio, utilizado pelos magistrados nas suas tarefas cotidianas de trabalho, o que culmina em obstruir os verdadeiros fins da reprimenda penal, uma vez que não se verificando devidamente o elemento culpabilidade no crime em espécie, jamais conseguiremos a precisão da pena adequada para reintegrar determinado infrator.

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