O GLOBO - 24.04.2005
Fraude
nas cirurgias
Fábio Vasconcellos
Um golpe vem sendo aplicado dentro de hospitais e clínicas
particulares do Rio, pondo em risco a vida de pacientes. Quadrilhas formadas por médicos, empresas que vendem
material hospitalar e funcionários de planos de saúde estão fraudando o
pedido de produtos cirúrgicos, com o objetivo de receber das seguradoras
por aquilo que não foi aproveitado no tratamento dos doentes. Para
ampliar os lucros, essas quadrilhas passaram, inclusive, a utilizar
material em mais de uma operação, o que contraria as regras da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e aumenta o perigo de
contaminação dos pacientes.
A Delegacia de Repressão às Ações do Crime
Organizado (Draco) investiga o golpe há três meses. Segundo a polícia,
são suspeitos de participarem do esquema cerca de cem médicos, além de
funcionários de 29 planos e empresas revendedoras de material
hospitalar. A fraude teria começado com urologistas, há cerca de cinco
anos, mas já há denúncias do envolvimento de cardiologistas e
ortopedistas. A polícia ainda não conseguiu estimar o rombo provocado
pelas quadrilhas nas operadoras de planos, mas os investigadores
chegaram a um revendedor de material cirúrgico que faturava, em média,
R$ 14 milhões por mês. Ano passado, porém, essa mesma empresa teria
faturado R$ 40 milhões em um mês.
Material cirúrgico teria sido reutilizado
O
inquérito da Draco foi enviado semana passada para o Ministério Público,
mas deverá retornar à delegacia, pois as investigações terão agora uma
segunda etapa. Diretores dos planos de saúde se
comprometeram a entregar à polícia um relatório completo sobre compra e
envio de material cirúrgico nos últimos anos. Paralelamente a isso, a
polícia procura pessoas que tenham sofrido infecção ao serem operadas
por médicos que fariam parte das quadrilhas. Estão sendo procurados
também pacientes que não receberam qualquer comprovante de que têm algum
implante cirúrgico.
— Há suspeita de que esses doentes sequer
receberam o implante prometido pelo médicos. Por outro lado,
procuramos também doentes que tiveram infecções, já que há suspeita de
que urologistas reutilizaram indevidamente material cirúrgico — disse um
policial.
O golpe das quadrilhas é simples. Os
médicos informam a um determinado plano de saúde que um paciente precisa
ser submetido, por exemplo, a uma operação para implantar parafusos num
osso fraturado. Eles pedem então três parafusos, quando na verdade são
necessários apenas dois. O plano atende ao pedido e solicita o produto à
empresa de material cirúrgico, que o encaminha, lacrado, para o hospital
onde será realizada a operação. De acordo com a polícia, a manobra é
facilitada porque a maioria dos planos de saúde não cobra dos médicos o
lacre das embalagens dos produtos para comprovar que o material foi de
fato usado.
Mesmo sem receber o lacre, os planos pagam
o produto aos fornecedores, que venderam três parafusos, mas na verdade
entregaram apenas dois. A Draco acredita que o lucro obtido pelas
empresas com a fraude é dividido entre funcionários, médicos e pessoas
de dentro dos planos.
O caso chegou à polícia no dia 26 de janeiro, quando foi feita uma denúncia anônima. Num
telefonema e, posteriormente, com o envio de documentos, uma testemunha
contou em detalhes como é feita a fraude. Após checar parte das
informações, a Draco instaurou inquérito em fevereiro. Por enquanto, 30
profissionais de saúde foram ouvidos e a Draco informou já ter provas de
que o golpe foi usado em casos de litotripsia, operação para retirar
cálculos da bexiga.
Segundo a polícia, urologistas solicitaram das seguradoras
itens como fio de guia hidrofílico (que é introduzido na uretra),
cateter angiográfico, extrator de cálculo e dilatador uretral, mas,
mesmo assim, optaram por reutilizar, após uma esterilização inadequada,
produtos que já tinham sido enviados pelos planos para o mesmo tipo de
operação. Daí em diante, de acordo com a polícia, há duas hipóteses: ou
os médicos devolveram aos fornecedores o material não utilizado ou os
produtos sequer saíram das empresas revendedoras. A polícia suspeita que
cada médico chegou a receber, por cirurgia, cerca de R$ 3 mil das
empresas fornecedoras.
A reutilização de produtos para litotripsia
não é permitida, conforme as normas da Anvisa. Há alguns
produtos, destinados a outras cirurgias, cuja reutilização é autorizada,
mas somente após um rigoroso processo de descontaminação.
O vice-presidente do Conselho Federal
de Medicina (CFM), Antônio Pinheiro, condenou a participação de médicos
nesse tipo de esquema. Ele disse que a polícia precisa investigar a
fundo o caso para descobrir até que ponto a denúncia é verdadeira.
Pinheiro afirmou ainda que o conselho deverá abrir imediatamente uma
sindicância para apurar as responsabilidades, assim que forem informados
os nomes dos médicos suspeitos de reutilizarem material cirúrgico ou
participarem das fraudes.
Conselho poderá até cassar
registro
O presidente do CFM disse que, caso sejam comprovadas as
acusações, os profissionais poderão ser suspensos do conselho ou até
mesmo terem o registro profissional cassado:
— É um caso abominável. Não podemos
permitir que pessoas que foram formadas para cuidar da saúde dos
pacientes se aliem a grupos para dar golpes em planos de saúde.
Ao descobrirem o golpe, representantes das seguradoras passaram
a se reunir com profissionais de outros planos de saúde que já adotam
medidas para evitar esse tipo de fraude. Há duas semanas, eles vêm
discutindo maneiras para fiscalizar a atuação dos médicos. Uma fonte
ligada a um plano informou que os diretores já decidiram cobrar dos
profissionais de saúde o lacre das embalagens dos produtos cirúrgicos.
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