A falta que fazem a coragem e a credibilidade de dizer e dizer bem o que precisa ser dito.
Afonso Arinos e Carlos Lacerda (politicamente não importando
as suas tendências), tiveram a força da palavra e a sustentação de verdade para derrubar o governo mais populista e demagogo do século passado enfrentando sem medo a repressão e desnudando o que havia de podre no poder. Hoje, qualquer besteirol mal alinhavado de um Lula desarticulado e sem entender o que fala,  não encontra quem o desminta de frente e mostre o nada que ele é.
 
Carlos Antônio.
 
Extraído de
no mínimo volta à primeira página Marcos Sá Corrêa  
    enviar | imprimir  
 
Salvo pela crise da oratória

12.12.2005 |  O governo, um “estuário de lama” crivado de inquéritos. Rastros de crimes, levantados em diferentes escaninhos da administração pública por comissões simultâneas do Congresso, atravessam as portas do palácio. Lá dentro, um pai dos pobres transformado em presidente fanfarrão, aproveitando viagens ao interior para negar, o mais longe possível da capital, o que o país estava ficando cansado de saber.

Lula? Não, Getúlio Vargas, nos idos de agosto de 1954. Precisamente, numa sexta-feira, 13. Onze dias antes de seu suicídio, no momento em que o líder da oposição na Câmara os Deputados foi à tribuna para responder, de improviso, ao discurso do presidente. Na véspera, Vargas tratara a série de suspeitas contra seu governo como mera campanha difamatória, montada por adversários com mentiras no lugar de denúncias.

O deputado que encarou o presidente se chamava Afonso Arinos de Mello Franco. Ele está morto há 15 anos. Mas acabou dias atrás na Academia Brasileira de Letras um ciclo de palestras sobre o seu centenário. E a comemoração misturou por acaso a história sobre o fim da era Vargas com o empate sem fim da era Lula. A tempo de mostrar, também por coincidência, que foi muita bondade de Lula chamar sua mansa oposição de golpista.

Falta-lhe, para isso, quase tudo. A começar por uma retaguarda militar menos sovada que a sobrevivente do regime de 1964. E sobretudo oradores parlamentares como Afonso Arinos, para acender o estopim dos escândalos no facho luminoso do brilho verbal. Aí, sim, Lula iria ver de perto o que é explosão.

Atualmente essas coisas não acontecem, ou custam tanto a acontecer que parecem presas no circuito fechado de Brasília, apesar de contarem com transmissões instantâneas da TV Senado. Discurso de político, seja do governo ou da oposição, virou conversa mole para brasileiro dormir. Mas em 1954, quando a televisão brasileira era pouco mais do que um protótipo e o rádio levava dias para repicar nos outros estados o que se falava no Rio de Janeiro, a tribuna era coisa séria.

Os deputados não contavam com a legião de assessores que têm agora, para lhes enfiar na cabeça o que a memória não traz de casa. Era outro Brasil, aquele de 51 anos atrás. O populismo ainda não havia instituído a crença de que os legítimos interesses do povo só podem chegar ao poder ao encarnar em líderes miméticos. Talvez por ser nova, ou recentemente restaurada após o longo intervalo do Estado Novo, a democracia representativa no Brasil ainda confiava mais em si mesma do que na força bruta do voto.

Tudo isso parecia tornar mais plausíveis carreiras como a do deputado Afonso Arinos, um parlamentar incubado na imensa biblioteca clássica de sua casa na rua Dona Mariana, um reduto de antigas chácaras no bairro carioca de Botafogo. Ele não perdia a pose de aristocrata nem ao fazer a primeira lei do Brasil contra a discriminação racial. Octogenário, defendeu na Constituinte de 1988 o voto aos 16 anos. Letrado até no pinga-fogo do Congresso, brigou na volta do regime civil pelo voto do analfabeto.

Na tal sexta-feira, 13, Afonso Arinos tinha pressa. Estava de saída para uma convenção da UDN em Minas Gerais. Falou sem usar sequer uma anotação, deixando-se carregar pelas palavras que lhe vinham à boca, como num transe. “Recebia-lhes o eco como se fossem de um outro, de alguém que não eu, que estivesse falando dentro de mim”, escreveria mais tarde , em suas memórias, cumprindo a sina de explicar pelo resto da vida de onde veio aquele improviso arrasador em forma de obra-prima, produto do “conflito entre a emoção e o raciocínio, entre o ímpeto e a prudência”.

E apesar disso, no discurso todas as vírgulas estão onde têm que estar, as orações intercaladas não separam, até ajudam a juntar melhor, o começo e o fim das frases e as concordâncias atravessam os períodos mais longos sem perder de vista quem é o sujeito do verbo. Tudo o que não se ouve mais nos debates políticos. Está para sempre gravado nos anais da Câmara, em fita magnética, em disco de vinil e finalmente em CD, como um dos maiores discursos de todas as épocas no parlamento brasileiro.

Lido, quase meio século depois, cada vez mais distante da comoção política que o inspirou, parece hoje uma peça literária moldada no bate-boca cotidiano. Como ele mesmo disse na ocasião, tratava-se, antes de mais nada, de misturar as contas do “rosário de auto-elogios” que o presidente recitava diariamente com “os assuntos da hora”, “os problemas do dia” e “as paixões que atraem a atenção do povo brasileiro”.

O resultado é um discurso ao mesmo tempo educado e agressivo, poético e informativo, fino e violento. Desanca Vargas de alto a baixo, convidando-o a fazer o que devia, ora “como presidente”, ora “como homem”. Devolve-lhe a “mentira”, usando o julgamento de Cristo por Pôncio Pilatos, a quem uma “tradição legendária” atribui a pergunta sobre “o que é a verdade”. E dessas alturas cai sobre o governo como um gavião sobre uma ninhada de pintos: “Se não é possível saber o que é a verdade, é perfeitamente possível saber-se o que não é a mentira”.

Afonso Arinos precisou de poucas frases para desmontar a “armadilha infantil”, a “manobra ingênua à força de ser idiota”, a “urdidura primária, tosca, que é a de tentar colocar o problema, como a partir de ontem vem-se tentado, nos termos de uma polêmica entre oposição e governo, nos termos de um debate entre a tribuna da Câmara e a Secretaria do Palácio do Catete, nos termos de uma convérsia de ponto e contraponto, nos termos de um diálogo musicado entre o orador do Legislativo e o orador do Executivo”.

Cabrum. Se não estavam ali os dois lados da crise política, eles teriam que ser devolvidos à dialética do crime e com o cumprimento da lei. E, para isso, bastaram os indícios de que a guarda pessoal de Vargas andara metida no atentado contra o jornalista Carlos Lacerda na rua Tonelero, contratando pistoleiros, para encurralar o presidente nas cordas de sua responsabilidade por tudo o que o governo fazia em seu nome, mesmo sem a sua aprovação direta. Enquanto falava, Afonso Arinos via da tribuna “elementos da maioria recuando para as fileiras dos fundos”, como se estivessem escapando do barco que afundava.

Nem precisou escarafunchar suspeitas sobre a participação pessoal de Vargas na conspiração dos cupinchas. “O que há de positivo, o que há de concreto, o que há de seguro, o que há de provado, o que há de irretorquível”, disse ele, “é que a guarda do palácio, como instituição do Estado, a guarda do palácio, como aparelho do poder getuliano, sabia do crime”.

No fim do discurso, o governo tinha caído irremediavelmente, segundo admitiu mais tarde o getulista Gustavo Capanema. O que aconteceu dali por diante, até o desfecho com tiro no peito, não era mais o fim de uma história, mas o começo de outra, que não acabou até hoje. Embora a política brasileira esse meio século tenha mudado tanto de estilo oratório que, no ano do mensalão, Lula deve sua imunidade à falta de gente habilitada a dizer no Congresso o que Afonso Arinos dizia.


---

Não leve nada pro lado pessoal. Apenas divirta-se.

Comentários: www.yahoogroups.com/group/goldenlist-L/messages

Newsletter: www.yahoogroups.com/group/goldenlist/messages




YAHOO! GROUPS LINKS




Responder a