A música popular de São Paulo

Te manduco-não-manduca
Existe música "paulista"? De que maneiras uma cidade se imprime na música
feita por quem vive nela? Essas perguntas estiveram no ar, para mim,
durante
a semana de palestra, workshop e shows que fiz no Centro Cultural Banco do
Brasil de São Paulo, dentro das séries sobre "o indivíduo e a metrópole" e
"os sons da cidade", com as quais se abriu o novo espaço. Convidado a dar
um
breve depoimento sobre o show, não consegui resistir aos apelos do tema,
esquentados em mim pelos eventos, e, quando me vi, estava enredado nessa
longa série de considerações (muitas delas óbvias, mas inevitáveis) sobre a
música paulista. Sou paulista.
O lugar ambíguo que a música popular paulista ocupa no cenário nacional, ao
mesmo tempo marcante e lateral, de quem está dentro e fora, sem nunca sair
completamente dessa posição, é o mais imediato sinal da diferença. São
Paulo
é sobretudo uma metrópole do século 20 -não foi um nicho de culturas orais
e
letradas plugadas no inconsciente colonial, como a Bahia desde o século 17,
Minas desde o século 18, o Rio de Janeiro no século 19. Isso faz uma enorme
diferença no modo como a música se entranha na vida popular e no modo como
se formaram e decantaram os gêneros musicais. Com exceção da música
caipira,
guardada tradicionalmente na voz encorpada e reta de Inezita Barroso, em
São
Paulo não se criaram os gêneros. Aqui eles se encontram, se misturam, se
desmancham, são processados e reprocessados e tratados muitas vezes com
aquela distância relativizante de que se investem as coisas quando elas são
sabidamente de empréstimo. Como é sabido também, esse tipo de situação
impõe
uma certa artificialidade congênita, mas abre espaço à liberdade dos usos,
já que a espontaneidade não vem de graça. Paulo Vanzolini conta que
perguntou uma vez a Adoniran Barbosa por que, no "Trem das Onze", se diz
"moro em Jaçanã" e não "no Jaçanã", como falam de fato os moradores do
lugar. Com humor irônico e auto-irônico o autor da "Saudosa Maloca"
respondeu: "E eu sei lá onde fica essa porcaria?". A anedota, cuja
veracidade não temos por que colocar em dúvida, diz tudo. Considerando que
"Trem das Onze" é "o" hino popular paulistano, se imagine por exemplo, num
paralelo absurdo, uma situação em que Noel Rosa afetasse não saber onde
fica
Vila Isabel, Cartola desconhecesse a Mangueira, Geraldo Pereira nunca
tivesse ido à Lapa. É claro que Adoniran está profundamente sediado no
Bexiga e na Barra Funda, tanto quanto os compositores do Rio no Rio, mas o
episódio mostra ao mesmo tempo o quanto São Paulo ultrapassa o indivíduo e
o
quanto a experiência da cidade, aqui, se impõe de saída como construção
ficcional de um todo que escapa. Assim também a língua encantadoramente
estropiada ou italianada de algumas canções de Adoniran, a
gravatinha-borboleta e o chapéu indicam o caráter deliberadamente
construído
e teatral do seu personagem, inseparável da sua verdade.

Dublê de sambista e professor
O próprio Vanzolini, por sua vez, que conta a história, é um caso bem
paulista de dublê de sambista e professor universitário, mestre cantor
cientista, a reforçar, por sua vez, a idéia de que a experiência da música
popular, em São Paulo, já transparece, na base da sua força, como
elaboração
de segundo grau envolvendo proximidade e distância. É na extensão dessa
mesma linhagem que se situam os primeiros sambas, tão autênticos quanto
estilizados, do filho de Sérgio Buarque de Holanda nascido no Rio e criado
na paulicéia. Só o tabu que cerca o estatuto de São Paulo na música
brasileira é capaz de explicar o fato, recalcado, de Chico Buarque não ser
visto, definitiva e gloriosamente para nós, como um compositor paulista
(opinião emitida por Caetano Veloso e contestada, já que nada é fácil nesse
mundo, pelo próprio Chico).
É que São Paulo cresceu para o Brasil como centro urbano-industrial, sem o
lastro de uma cultura musical prévia capaz de se incorporar à via central
da
canção brasileira, quando esta se expandiu a partir do gramofone e do
rádio.
Em 1917, quando o Rio produzia o samba, São Paulo produzia a greve
operária,
e seus sucessos nacionais em música, até a década de 60, se contam nos
dedos. A experiência paulista é intrinsecamente metropolitana: a tendência
de São Paulo é a expressão de vanguarda e/ou de massa, do muito fino ou do
muito grosso e do encontro do fino com o grosso, mais do que a expressão do
gosto popular nacional (do qual a canção se tornou o "médium").
O sucesso das baladas melodiosas de Guilherme Arantes, a certa altura, é um
exemplo e de imediato uma exceção. Vanguarda e massa já eram linhas de
força
do movimento modernista, da utopia oswaldiana do biscoito fino para as
massas, da paulicéia desvairada e macunaímica de Mário de Andrade:
simultaneidades metropolitanas, futuristas e primitivistas, com ambição
totalizante de interpretação do Brasil.
São Paulo, que se insere no passado brasileiro menos pela experiência da
cidade do que pela experiência nômade-colonizante do bandeirantismo, sabe
que está meio deslocada dos nichos urbanos do Brasil colonial profundo e
quer uma vez mais, movida pela força moderna da indústria, incluí-los, ou
engoli-los, por meio da totalização interpretante, numa espécie de
neobandeirantismo hermenêutico-pragmático. Variações dessa ambição
antipopulista, solidamente armada para corrigir os traços gerais da
formação
brasileira que ela mesma se encarrega de identificar (atraso,
patrimonialismo, violência cordial), podem ser sentidas em Caio Prado Jr.,
em Sérgio Buarque de Holanda (com a ambiguidade que corresponde à sua
finura
interpretativa), na sociologia da USP, na poesia concreta, no PSDB (onde a
ambiguidade se torna patética), no PT.
Te manduco, não manducas: essa seria uma ótima tradução
macunaimantropofágica ("te como, não me comes") para a divisa latina do
lema
paulista -"n
on ducor duco" ("não sou conduzido, conduzo"). Mas o Brasil se encarrega
quase sempre de converter essa locomotiva operosa em "como era gostoso o
meu
paulista". Te-manduco-não-manduca.
Já o Teatro Oficina, mais ambicioso ou generoso que todos, não quer
corrigir
o Brasil se não for para se entregar a ele e se transformar nele,
manducante
manducado, com vanguarda, massa, povo e tudo. Foi em alguns momentos assim
que a vida cultural paulista teve o papel de ressoar o Brasil
contemporâneo,
no sentido de ser o lugar real, talvez o único, onde as imensas diferenças
do país são postuláveis simultaneamente (Guimarães Rosa criou o lugar
imaginal profundo para isso, mas aí já é outra história: Minas). O
movimento
tropicalista, produto da tradição barroco-baiana, da linguagem como jogo do
significante, da intimidade com as formas ancestrais da sociabilidade
brasileira ao mesmo tempo que da abertura radical às diferenças e à
atualidade tecno-pop do mundo, não teria sido possível fora de São Paulo e
se deu de fato em coalizão com a base experimental da música paulista
(Rogério Duprat), tendo a cobertura crítica da poesia concreta. A bossa
nova
só deslanchou com o sucesso de João Gilberto em São Paulo. Vocações
experimentalistas e avessas à trivialidade vieram do Norte e do Sul para
São
Paulo e ficaram: Tom Zé, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, cada um deles
criador pessoalíssimo de uma linguagem ao mesmo tempo que intérprete
privilegiado da cidade, fazendo "pura" música paulista, inclusive porque
uma
das principais maneiras de ser paulista é não ser de São Paulo. A dimensão
industrial e pós-industrial do rock, a partir do fim dos anos 60, pôs São
Paulo, em certa medida, na corrente nervosa do mercado: Mutantes, Rita Lee,
Ultraje a Rigor, Titãs (dentro e fora dos quais a figura de Arnaldo Antunes
concentra todos os aspectos de que venho falando: reversibilidade entre
vanguarda e massa, ambiguidade de estar dentro e fora do sucesso comercial
e
a criação de uma poética intimamente ligada à experiência da megacidade).

Humor sobre a condição urbana
Depois disso, e paralelamente, o bolo do consumo de massa que cresceu sob o
Brasil de Fernando Henrique, tendo São Paulo como crivo do Ibope, alterou a
posição da cidade no imaginário brasileiro e "liberal-gerou" sucessos como
o
dos Mamonas Assassinas, que prefiguraram precocemente o do pagode paulista
junto com os do padre Marcelo, do Ratinho e da Tiazinha, elevados
transitoriamente ou não a ícones nacionais e somados às figuras já
tradicionais de Silvio Santos ou do Faustão.
A trajetória fugaz e trágica dos Mamonas Assassinas projetou em escala
extensa um humor tipicamente paulista sobre a condição urbana (domingão,
descida pra Santos, galhofa sobre sexo e clichês de massa compartilhados,
trocadilhos), humor não totalmente estranho ao paulistismo do Língua de
Trapo e Premeditando o Breque, do Karnak e do cinema de Ugo Giorgetti,
ressalvadas, é claro, as enormes diferenças, aí envolvidas, de repertório e
alcance artísticos (adoro "o mundo é pequeno pra caramba/ tem alemão
italiano italiana/ o mundo filé milanesa/ tem coreano japonês japonesa/ o
mundo é uma salada russa/ tem nego da Pérsia tem nego da Prússia/ o mundo é
uma esfiha de carne/ tem nego do Zâmbia tem nego do Zaire") ("O Mundo", de
André Abujamra/Karnak).
Ao mesmo tempo, saiu das "cafuas, guetos e santuários" das periferias, na
expressão de Tom Zé, do "ouro das cabeças" e desse "útero de idéias" da
mina
humana da cidade, a poderosa proliferação do rap, plasmado muitas vezes no
contato magnético com o Carandiru, centro de referência identitário para
uma
grande parcela da população pobre.
Assim, as muitas cidades misturadas em São Paulo têm como traço comum, mais
do que alguma experiência fusional, como a do Carnaval, que lubrifica as
disputas, a experiência do choque (choque de gêneros, repertórios,
técnicas,
apelos visuais, mercadorias, massas, distâncias, qualidades, quantidades,
classes, torcidas, regiões). Os choques acirram as diferenças, ao mesmo
tempo em que são produzidos por elas, num circuito que se realimenta. Mas o
atrito de excessos, que bem ou mal aproxima os pólos negativo e positivo, o
fino e o grosso, não é só distanciador: ele também é convergente, junta
coisas distantes por contraste, sinaliza semelhanças por disparidade, já
que
não deixa de ser o contato da carga elétrica da imensa massa de realidades
que a cidade mobiliza.
No Rio e em Salvador os excessos urbanos incluem os choques de beleza,
natureza e mar, expõem a desigualdade a olhos nus e a violência azeitada em
séculos de porosidade sociocultural, com as respostas rítmicas para tudo
isso. Sem o alcance visual, o contato corporal e outras distrações, sem o
refresco do mar e a vaselina tribal da festa pública, os choques em São
Paulo produzem atritos semióticos que não deixam de ser pontes entre
linguagens, minhocões poéticos, túneis de rap sob penitenciárias, jardins
suspensos no concreto. Sinais musicais fortes de São Paulo, nem sempre
audíveis, perceptíveis ou suportáveis pelo Brasil e pela própria cidade,
são
a cabeça explosiva e zen de Walter Franco no Maracanãzinho, as atonalidades
ritmadas e quebradas de Arrigo Barnabé no Pão de Açúcar, as ironias
cortantes dos suingues e silêncios de Itamar Assumpção no apagão da
Paulista, as ironias também cortantes de Rita Lee mesmo no auge dos seus
hits, as ruidagens polifônicas e as (des)construções de Tom Zé, o canto
falado do Rumo, as experiências sonoras de todo tipo de Livio Tragtenberg,
as contundências variáveis, mas potentes, dos Titãs, os Racionais MCs e o
movimento popular urbano cavado no chão da exclusão pelo rap paulista. Um
poema de Augusto de Campos ("Cidade/City/Cité") (1963) diz isso tudo com
precisão exaustiva e inesgotável numa só palavra, mantra
epifânico-babélico,
que não deixa de ser a mais perfeita tradução da cidade num macrotrocadilho
paulista: "atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistorilo-
qualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapa-
reciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade/ city/cité".


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Se toda canção contracena com o desejo ou a promessa de felicidade (e
esse é o mito maior da canção no Brasil) e se São Paulo não se oferece
efetivamente como um "sonho feliz de cidade", como fica a questão, por
dentro?
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Três línguas simultâneas
O fluxo de choques e potências em efeito cascata diz a megacidade em três
línguas simultâneas, numa vertiginosa multiplicação de sentidos que é uma
síntese poderosa da experiência contemporânea. Que esse poema sirva aqui de
ponte entre a sociologia cultural improvisada que estive delineando (e que
peço que tomem mais como depoimento pessoal do que como pretensão
explicativa) e alguns comentários sobre a dimensão menos visível e lírica
da
canção paulista, assunto mais difícil, e com o qual me sinto, em
compensação, totalmente identificado. Se toda canção contracena com o
desejo
ou a promessa de felicidade (e esse é o mito maior da canção no Brasil) e
se
São Paulo não se oferece efetivamente como um "sonho feliz de cidade", como
fica a questão, por dentro? Luiz Tatit fez disso uma canção e o
assunto-título de um disco seu: "Felicidade". Quero lembrar, antes de
comentá-la, algumas idéias do ensaio clássico de Georg Simmel, "A Metrópole
e a Vida Mental", escrito em 1903 sob o impacto da Berlim do início do
século 20 (1). A exemplo da paulicéia desvairada, embora duas décadas
antes,
a cidade alemã teve um surto industrial rapidíssimo que a fez crescer muito
em pouco tempo, expondo de maneira gritante os sintomas da metrópole ao
olhar do sociólogo (nem bem saí e já volto, portanto, à sociologia).
Mergulhado na berlinéia desvairada, Simmel assinalava que a metrópole
representa um tremendo incremento de liberdade e de autonomia individual em
relação à vida provinciana, ao mesmo tempo em que submete o indivíduo às
forças esmagadoras da divisão e especialização do trabalho, colocando-o na
cadeia sem fim da dependência cega de todos os outros. Ao mesmo tempo que
território privilegiado da moderna individualidade hiperpotencializada e
seu
campo de provas, a grande cidade pressiona por anular a escala da pessoa,
violentamente desproporcional em relação à escala da vida objetiva. Nesse
caso, o "indivíduo" é mais que nunca um ser único singular ao mesmo tempo
que um ninguém, pressionado entre a necessidade de ser diferente e o peso
esmagador da indiferenciação. Esse impacto produziria segundo Simmel certas
atitudes típicas da vida mental metropolitana. Por um lado a busca pela
excentricidade ou a sugestionabilidade do sujeito que tem dificuldade de se
distinguir e de se reconhecer no meio da grande sociedade anônima. Por
outro, a atitude blasé daquele que, saturado de estímulos e
indeterminações,
determinadas em última ou primeira instância pelo dinheiro que troca tudo
por tudo, embotou a capacidade de diferenciar e desvaloriza tudo e todos.
As
duas posições são evidentemente complementares. Entre elas, uma certa
reserva defensiva típica do comportamento metropolitano médio, reforçada
pela proteção psicológica contra os choques contínuos do cotidiano, que é a
postura racionalizante. Não é difícil reconhecer aí, imediatamente, alguns
traços típicos da sociabilidade paulistana, como a "escandalosa" reserva
geral de pessoalidade em contraste com as tendências extrovertidas e
efusivas da atitude baiana e carioca (reserva da qual a "deselegância
discreta de suas meninas" se tornou um índice clássico) e o tratamento
"cabeça" das questões estéticas, na vida cultural em particular (do qual
estou me oferecendo, de bandeja, como prova a mais). Quem viu os shows do
ciclo do CCBB pôde sentir claramente que Hermeto Paschoal e Tom Zé são
artistas que manifestam em suas apresentações, cada um a seu modo, uma
espontaneidade inequivocamente construída, como toda grande arte, mas
alimentada ao infinito pelas matrizes pessoais e familiares da vida
nordestina. A facilidade invejável e encantadora de fazer vínculo imediato
sem o preservativo da reserva urbana, de se render à graça, de render pela
graça, de brincar no limite do limite com um à-vontade total são
capacidades
profundamente introjetadas de quem não é um nativo originário da metrópole,
mas do coração-sertão do Brasil. Não-metropolitanos na origem, embora
criadores de ponta e do mundo, cosmopolitas pela liberdade com que criam e
com que transitam naturalmente fora dos limites, respeitam, como
sertanejos,
a existência insubstituível de cada coisa e de cada som, ao mesmo tempo em
que brincam e jogam com ela, para muito além das convenções. Diferentes e
até simetricamente opostos nas suas poéticas baseadas na experiência sonora
(se fôssemos particularizar), ambos são encantadoramente pessoais nas
relações e expressam isso na atitude artística no palco e fora dele.
Imbuídos de uma familiaridade de raiz com o público, familiaridade que
estilizam brilhantemente como traço artístico, tratam cada pessoa, mesmo
desconhecida, como se fosse conhecida. São rigorosamente o contrário do
blasé: este trata cada pessoa, mesmo conhecida, como se fosse desconhecida.

Felicidade imotivada
A atitude blasé, a rigor, não dá arte, embora ela tenha a sua importância
perfeitamente reconhecível na constituição de uma certa cultura
jornalística, em São Paulo. Já a lírica, ou uma certa lírica paulistana,
trabalha os mesmos fenômenos que originam a atitude blasé, mas ao inverso,
indo fundo nos meandros sutis do conflito entre a insensibilidade
automática
de quem é insensivelmente exposto à violência dos estímulos citadinos e a
extrema sensibilidade que subjaz a essa própria insensibilidade. Essas
canções trabalham, na verdade, a produção de uma outra espécie de
sensibilidade (como se vê, em São Paulo tudo se trabalha), sensibilidade
que
tem que conviver muito de perto, e a muitos custos, com as proteções
psíquicas insensibilizantes.
"Não sei porque estou tão feliz/ não há motivo algum pra ter tanta
felicidade/ não sei o que foi que eu fiz/ se fui perdendo o senso de
realidade/ um sentimento indefinido/ foi me tomando ao cair da tarde/
infelizmente era felicidade". A canção de Luiz Tatit desenvolve longamente,
com uma coerência hilariante, embora todo o tempo contida, ou por isso
mesmo, as diferentes circunstâncias desse nó mental e sentimental: a
acreditar nas palavras do sujeito, a "felicidade" imotivada e repentina se
alastra como uma doença irrefreável, para a qual se buscam, em vão,
expedientes curativos que nunca atingem o seu objetivo; ao mesmo tempo, a
música da voz é melancólica e não coincide com o sentimento cuja força
avassaladora o sujeito anuncia.


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A experiência do choque está presente em todos os níveis da concretude
poética e sonora das canções
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A felicidade parece estar conectada a um transformador elétrico que a
converte, já na fonte, em melancolia, para não queimar o fusível mental com
as suas "intensidades inimagináveis" (a expressão é de Simmel). Mas a
melancolia, que não sabe de si mesma, continua ainda assim a se confrontar
com as ameaças supostamente terríveis de uma felicidade da qual só se nota,
no entanto, o anúncio entre espantado e resignado do sujeito. Não
coincidente consigo (o que desponta todo o tempo em ironia, não sabemos se
terna ou cáustica), o sujeito não aguenta a felicidade que sente e não
sente
a felicidade que aguenta. Ou melhor, já que tudo é sincrônico: não aguenta
a
felicidade que (não) sente e não sente a felicidade que (não) aguenta.
Desnudando ironicamente a cândida ilusão desse pierrô urbano, que não
enxerga a sua divisão nem os efeitos da sua (de)negação, toda
racionalizada,
a canção expõe um mecanismo sutilíssimo no qual reconhecemos, em seus
disfarces, muito da nossa sensibilidade comum, coexistente com a
dificuldade, o medo e a impossibilidade de sentir. Coisas inseparáveis, na
qualidade de canção, daquela melodia instável da voz, próxima da fala, que
vai fundo a um lugar indefinível em que tudo isso está banhado, além de
humor, em fragilidade, intimidade e aérea graça. Atenta desde sempre à
lição
da bossa nova, a poética da canção em Luiz Tatit estabelece um delicado
isomorfismo irônico entre letra e música, alterando as relações habituais
entre melodia e fala e propondo discreta e incisivamente um outro rumo de
música popular.

Prisma inverso
A poética de Arnaldo Antunes, que também forja uma linguagem própria para
as
suas necessidades, em vez de utilizar simplesmente os expedientes comuns da
canção, pode ser correlacionada com as mesmas questões, das quais oferece
novamente um prisma inverso (prisma que a afasta por sua vez, pelo avesso
do
avesso do avesso, do ponto de vista blasé). O individualismo
potencializado,
ao mesmo tempo que anulado num ninguém que se confunde com a massa das
coisas, é assumido escancarada e afirmativamente, em sintonia com a
corrente
nervosa e veloz do ambiente ultra-urbano. "Uma pessoa/ ninguém/ nenhuma
pessoa/ ninguém/ uma pessoa/ ninguém/ também/ numa pessoa" ("Ninguém"). A
experiência do choque está presente em todos os níveis da concretude
poética
e sonora das canções, na textura timbrística e ruidística dos arranjos, no
peso e no ataque da voz, nas inflexões graves da entoação, nos gestos
imperativos ("tire a mão da consciência e meta/ no cabaço da cabeça")
("Consciência"), até mesmo quando se canta "eu vou te dar alegria/ eu vou
parar de chorar" ("Alegria"), assim como se pode gritar "socorro/ eu não
estou sentindo nada", em parceria cúmplice com a curitibana Alice Ruiz
("Socorro"). Arnaldo Antunes cria correntes associativas de coisas que se
tocam, desmetaforizadas, sem paz, na cadeia das relações que se dão para
além e aquém dos sujeitos, incabíveis nos seus habitats habituais. "Antes
de
existir computador existia tevê/ antes de existir tevê existia luz
elétrica/
antes de existir luz elétrica existia enciclopédia/ antes de existir
enciclopédia existia alfabeto/ antes de existir alfabeto existia a voz/
antes de existir a voz existia o silêncio" ("O Silêncio"). A rede
metonímica
remonta, percorrendo lúdica e vertiginosamente pelo avesso a história das
tecnologias da inteligência, dos processos de armazenamento e manipulação
de
informação e memória, a um originário silêncio sincrônico, tão fundante
quanto instantaneamente atual: o silêncio-ruído (como o de John Cage) do
coração-máquina "amplificado no amplificador/ do estetoscópio do doutor/ do
lado direito do peito este tambor" (cujo tautológico pulsar pulsante é
metáfora metonímica, como aquela de outro poema-canção, "Tato", em que "o
pinto duro pulsa forte como um coração"). Luiz e Arnaldo: em yin e yang,
dois nativos de São Paulo. Por outro lado: num depoimento a Daniel Augusto,
na excelente série de vídeo/TV "Mapas Urbanos", sobre configurações
culturais de cidades brasileiras, Tom Zé conta que só aprendeu a ler porque
a mãe venceu a discussão com o pai sobre a necessidade, muito duvidosa no
ambiente da cultura oral do sertão, de mandar filhos para a escola. Mas, a
julgar pelo seu relato cheio de saborosa sapiência, é exatamente graças à
oralidade geral desse ambiente em que a utilidade da escrita era tão
duvidosa que ele pôde descobrir, na sala de aula primária, com um espanto
verdadeiramente inaugural, pré-socrático e rosiano, o poder universal e
quase milagroso do alfabeto -escritura silenciosa que conseguia estar
simultaneamente na mente de todo mundo-, descoberta das descobertas que
abria o sertão-mundo a todas as transformações inimagináveis, entre as
quais
se incluiriam mais tarde os adventos admiráveis da torneira, da latrina, da
lâmpada elétrica. Assim, o caminho desse "astronauta libertado" ("2001")
que
viveu a grande efervescência de Salvador e São Paulo nos anos 60, autor de
"São São Paulo, Meu Amor", inventor do sampler artesanal na década de 70 e
referência de ponta para as vanguardas nova-iorquinas na década de 90,
corre
na mesma trilha ao avesso d'"O Silêncio" de Arnaldo (e Carlinhos Brown):
cruzamento de tempos convergentes e divergentes do Brasil em São Paulo,
onde
"riquezas são diferenças". Aqui o assunto vai chegando ao meu ponto cego: a
minha participação nisso tudo. O que eu mais quero, em todo caso, é
participar dessas riquezas e diferenças como paulista do mar, chopiniano
jobiniano de vanguarda (como se isso fosse possível) voltado pro Brasil
(vide "São Paulo Rio", o disco que está na base do meu show, workshop e
palestra).

Bolha de sabão da cultura
Um dos grandes ganhos que obtive do fato de participar do último Festival
da
Globo foi perceber com absoluta nitidez e orgulho, em meio àquele show de
exterioridade, que faço parte do mesmo meio de onde vêm Ná Ozzetti, Monica
Salmaso e Virginia Rosa, Dante Ozzetti, Fábio Tagliaferri e Luiz Tatit.
Em meio às muitas são paulos, das quais fazem parte o riquismo colonizado
que pretende se desincompatibilizar do Brasil, a idiotia consumista e a
pobreza de espírito, o fascismo latente na conjunção de ignorância com
medo,
o dinheirismo descarado, a praga publicitária, o universo otário, o modismo
blasé, o bairrismo burro e o bom-mocismo da classe média isolada em seus
nichos, aqui na finíssima bolha de sabão da cultura da zona oeste e
mergulhado nesse mar de gente e de possibilidades, eu quero a consistência,
o rigor, a generosidade, o grau de atenção, a amplitude e a ambição que a
cidade dá e exige.
Fazer o show com Jussara Silveira (baiana nascida em Minas que mora no Rio
e
que sabe o que diz quando canta) e Elza Soares, a poderosa encarnação do
Rio
de Janeiro, cantando poema de Oswald de Andrade ("Flores Horizontais", da
peça "Mistérios Gozozos"), "Comida e Bebida" (sobre trecho das "Bacantes",
de Eurípides) e o "Anhangabaú da Felicidade". Ter a banda compactada,
paulista (Swami Junior e Chico Pinheiro) e carioca (Guilherme Kastrup).
Parcerias com Zé Celso, Luiz Tatit, Jorge Mautner (era imprescindível falar
dele), Ná Ozzetti, Vadin Nikitin (ator-autor-diretor de teatro da nova
geração que vem florescendo), Paulo Neves (meu parceiro gaúcho desde
sempre), Alice Ruiz (que acompanhou real e simbolicamente todos os
acontecimentos da semana) e com os palíndromos da minha filha Marina. "Lá
vou eu em meu eu oval." "Só dote dádiva é a vida de todos."
No domingo, quando a luz se apagou em regiões de São Paulo, no terceiro dia
de show no CCBB, Elza Soares estava cantando "Bambino" (música de Ernesto
Nazareth com letra minha): "E se o mundo cair?/ E se o céu despencar?
(...)/
E se a noite pedir/ e se a chama apagar?/ e se tudo dormir/ o escuro
cobrir/
e ninguém mais ficar?/ (...) e se tudo falir/ o mar acabar/ e se eu nunca
pagar/ o quanto pedi/ pra você me dar?". O apagão iluminou a canção, e Elza
já estava iluminada. Ela não parou de cantar nem eu de tocar piano nem os
violões nem a percussão. "Vou seguindo seguir/ e quero teus lábios/
beijar".
O teatro é pequeno, com mezanino, o que deixa o público mais próximo ainda
e, mesmo em teatros muito maiores, a Elza gosta muitas vezes de mostrar que
pode cantar sem microfone.
Quando a canção terminou, se acendeu uma de luz de serviço. Os bastidores
ficaram cheios de bombeiros. Mas não havia maiores sustos, apenas uma
coincidência poética, percebida ou não, que soava no escuro como um aviso
preparatório e engraçado, um desses treinamentos simulados para situações
de
emergência e com a trilha musical já pronta. A Elza demonstrava que é
sempre
"dura na queda", inclusive na queda de força elétrica. O público ria. E pra
mim a maior das inadimplências ainda é e sempre será: "E se eu nunca pagar
o
quanto pedi pra você me dar?".
Quando a gente entra pra fazer um show é sempre no escuro. Foi assim também
ali, naquela sala de acabamento curitibano, com a instalação do Tunga na
entrada, moradores sem morada, "caroço bruto arrancado do vão do viaduto",
no centro do centro sem centro cheio de nordestes e promessas tímidas de
Cinelândia, no coração da minha cidade das cidades, nossa e de ninguém.

Nota



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1. Georg Simmel, "A Metrópole e a Vida Mental", em Otávio Velho (org.), "O
Fenômeno Urbano" (Rio de Janeiro, Zahar, 1979, págs. 11-25). Beneficiei-me
muito da leitura de "Ternura e Atitude Blasé na Lisboa de Pessoa e na
Metrópole de Simmel", de Hermano Vianna, publicado em Gilberto Velho
(org.),
"Antropologia Urbana -Cultura e Sociedade no Brasil e em Portugal" (Rio de
Janeiro, Zahar, 1999), e de "As Aventuras de Georg Simmel", de Leopoldo
Waizbort (São Paulo, editora 34, 2000).


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José Miguel Wisnik é músico, compositor e professor de literatura
brasileira
na USP. É autor de "O Som e o Sentido" (Companhia das Letras) e "O Coro dos
Contrários" (ed. Duas Cidades).

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