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Daniel Brazil


DESORDEM GERAL
Sem nunca ter tocado piano, repórter vira pianista. OMB também é acusada
de forjar apoios e fazer vista grossa a subfaturamento. 
Por Alexandre Pavan 
 
Não é preciso ser nenhum Chico Buarque ou Hermeto Pascoal para adquirir
uma carteira da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) e atuar legalmente na
profissão. Não é preciso nem mesmo ser diplomado em conservatório ou
universidade. Qualquer pessoa que arranhe algumas notas em um instrumento 
pode se lançar na carreira artística com o aval da OMB, entidade que
possui atribuições semelhantes às da Ordem dos Advogados do Brasil e
deveria exercer a defesa da classe e fiscalizar o exercício da profissão.
Para atuar como cantor ou instrumentista, seja numa casa de shows como o
Credicard Music Hall, seja num barzinho da Vila Madalena, o músico
precisa possuir uma das carteiras da OMB, de músico prático ou músico
profissional, e estar em dia com as anuidades. A única diferença entre as 
carteiras é o tipo de exame. Para adquirir a primeira, um professor
avalia as habilidades do músico em seu instrumento. Já para a segunda é
preciso conhecer também teoria e solfejo.
O repórter de CartaCapital, mesmo sem nunca ter tido uma única aula de
piano na vida, submeteu-se ao teste no instrumento e foi aprovado. O
exame, realizado na escola de música Keyboard, em Jundiaí (SP), foi
aplicado pelo próprio delegado regional da OMB, Marcelo Dantas Fagundes.
Na noite anterior ao teste, o repórter pediu a um músico que lhe
ensinasse os dois acordes (lá menor e sol) da canção Pra Não Dizer que
Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, um dos hinos da MPB contra o
regime militar. Antes mesmo de interpretá-la, o jornalista já podia ser
considerado um músico. Depois de pagar uma taxa de R$ 260, em dinheiro, e 
fornecer todos os documentos necessários para a inscrição (quatro fotos
3x4, CPF, RG, carteira de reservista e comprovante de residência),
Fagundes emitiu um recibo com carimbo da OMB contendo o nº 24.321, que
permitia ao repórter atuar profissionalmente como pianista.

Só depois o exame foi feito, e não durou nem cinco minutos. "Toque alguma 
coisa", pediu o examinador. No piano oferecido, com notas desafinadas e
teclas travadas, o repórter atacou os únicos dois acordes que conhecia.
Pouco depois, o desastre musical foi interrompido pelo delegado regional
da OMB com um "já está bom".
- Você sabe ler partitura?
- Não.
- Seria interessante você aprender.
O exame foi realizado no dia 29 de janeiro. Dois meses depois, a carteira 
foi entregue.
Nos últimos dois anos, o órgão vem sofrendo pressão de um número
considerável de músicos, uns pedindo sua extinção, outros uma
reformulação profunda. No coro dos descontentes, as primeiras críticas se 
referem aos exames para obtenção da carteira e o pagamento das anuidades, 
que é de R$ 82,40.
"Defendo a OMB como instituição, mas há muito tempo suas práticas são
questionáveis", avalia Marcus Vinícius de Andrade, presidente da
Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (Amar-Sombras) e diretor
da gravadora CPC-Umes. "A atual administração é prepotente, transformou a 
concessão de carteirinhas em um grande negócio e não está zelando pela
qualidade artística." 
Filiado à OMB desde 1967 e com as anuidades em dia, Andrade afirma que,
por causa da emissão irrestrita de carteiras, muitos amadores estão
entrando na profissão. Para ele, isso fica claro quando a situação
econômica do País piora. Pessoas que perdem o emprego acabam indo fazer
bico de músico em bares só porque conseguem arranhar um violão. "Com
isso, a profissão é aviltada e os cachês ficam nivelados por baixo."
O presidente da Amar-Sombras culpa também a própria classe musical pela
situação. "É preciso entender que existem eleições na OMB e, se a
situação está assim há tanto tempo, é porque a classe artística, mesmo
descontente, foi incapaz de se organizar."
A OMB possui cerca de 50 mil inscritos em todo o País. Desses, pouco mais 
de 8 mil estão em dia com as anuidades. Em fevereiro de 2000, o
departamento jurídico do Conselho Regional de São Paulo emitiu uma carta
cobrando os inadimplentes e informando que aqueles que não quitassem seus 
débitos ficariam automaticamente suspensos do exercício profissional.

Indignada com o conteúdo da carta, a Associação da Banda Sinfônica do
Estado de São Paulo apresentou uma moção de repúdio, divulgada entre os
músicos e pelo site da entidade (www.bandasinfonica.com.br). "Quando
colocamos o texto na internet, começamos a receber mensagens de todo o
País e descobrimos que a sensação de descontentamento era maior do que
pensávamos", afirma o percussionista Saulo de Arruda Camargo, presidente
da associação.
Ainda no primeiro semestre de 2000, em abril, a Associação da Banda
Sinfônica realizou uma assembléia com os 80 integrantes do grupo e
decidiu entrar com um mandado de segurança coletivo contra a OMB. A
liminar foi concedida, mas logo em seguida cassada. A sentença deve sair
ainda este mês.
Logo depois, um grupo de 11 pessoas entrou com um processo na ação
popular contra a Ordem, na 12ª Vara Federal de São Paulo, questionando o
subfaturamento de contratos de artistas internacionais (leia na pág. 72), 
a cobrança das anuidades da carteira de músico e a acumulação de cargos
por parte de Wilson Sândoli, que ocupa as presidências do Conselho
Federal da OMB, do Conselho Regional Paulista e do Sindicato dos Músicos
de São Paulo.
"A ação popular discute interesses públicos e a música, de acordo com a
Lei de Incentivo à Cultura, integra o patrimônio cultural do Brasil",
explica o advogado e guitarrista Marcel Nadal Michelman, responsável pelo 
processo. "Então, a OMB, quando deixa de fiscalizar a profissão, não está 
nem aí para contratos ou fornece carteirinhas para qualquer um que pague, 
está destruindo a cultura", diz.

O andamento da ação, no entanto, está mais lento que um samba-canção.
Enquanto os músicos aguardam, o presidente da OMB se defende dizendo que
o movimento contrário à sua administração é feito por uma minoria.
"Nossos balanços são aprovados pelo Tribunal de Contas da União e as
auditorias são feitas. Se estou aqui todos esses anos, não fui nomeado
por ninguém, mas sim pelo voto do músico", afirma Sândoli.
Sem saber que a revista havia realizado o teste para a Ordem, a Sândoli
foi indagado sobre quanto tempo um pessoa deveria estudar piano para
passar no exame prático. "Depende da pessoa. Se ela tocar tudo o que a
banca examinadora pedir, tira a carteira", afirmou.
Sândoli assumiu a OMB em um período conturbado. Em 1964, os principais
dirigentes do órgão - maestro José Siqueira, presidente, Constantino
Milano Neto, de São Paulo, e Gentil Filho, do Rio - foram destituídos
após uma intervenção federal. Os conselhos, que elegem os presidentes,
também se dissiparam. Por comodismo ou medo, muitos dos membros
resolveram se afastar.
Num primeiro momento, a OMB de São Paulo ficou sob intervenção do
violinista Raul Laranjeiras, mas logo foi indicado o nome de Sândoli, que 
havia perdido as eleições para o sindicato naquele mesmo ano. Só em 1966
seriam convocadas novas eleições para os conselhos - e Sândoli permaneceu 
no cargo.
Seu poder político é inversamente proporcional ao de sua carreira
artística. Nos anos 50 e no início da década de 60, Sândoli atuou como
crooner de algumas casas noturnas no Centro de São Paulo, na época
chamadas de táxi-dancings. O presidente da OMB vangloria-se de ter
gravado um disco, mas, quando questionado sobre o nome do trabalho, que
músicas gravou ou qualquer outro assunto que diga respeito àquele
período, ele desconversa: "Isso já faz muito tempo".

Naquela época, cantores e instrumentistas paulistanos costumavam se
reunir no chamado "ponto dos músicos", os bares da esquina das avenidas
Ipiranga com São João, para conseguir serviço. Havia muitas casas de
shows, com apresentações contínuas. O rodízio de músicos era grande por
não haver vínculo empregatício e o pagamento ser em forma de cachê
diário. Sob a condição de ter os seus nomes omitidos, músicos que
trabalharam naquele período dizem que Sândoli atuava como agenciador de
artistas, isto é, apresentava o músico a determinada casa e ficava com
uma parte do cachê.
O presidente da Ordem dos Músicos diz que abandonou a carreira de cantor
há 15 anos, quando começaram a acusá-lo de só conseguir trabalho porque
era o chefe da autarquia.
- Mas, se os cargos na OMB são honoríficos, o senhor vive do quê?
- Fui advogado e hoje sou juiz aposentado.
Há quase quatro décadas dirigindo o órgão, Sândoli apresenta, orgulhoso,
a atual sede da Ordem - dois andares no prédio número 138 da avenida
Ipiranga, em São Paulo -, que afirma ser sua maior obra. "Está tudo pago, 
tanto os andares como a reforma, e não se deve um único real para
ninguém. Faço uma pergunta: 'No que depende de mim, o que é que eu
deveria fazer para o músico que eu não fiz?'", questiona.
- A Ordem possui algum acervo ou serviço de documentação de partituras?
- Nunca nos preocupamos com isso porque os músicos não se interessam.
Para o cantor e compositor Ivan Lins, a OMB deveria fazer muito mais para 
valorizar o mercado musical, que ele considera "decadente". "É um
absurdo, mas o jabá continua existindo. Hoje a música brasileira é medida 
pelo valor do cheque", indigna-se. Citando o exemplo norte-americano,
Ivan Lins acredita que, se a OMB e o sindicato fossem centralizados, a
atuação de ambos seria mais eficiente.
Outro problema é a administração. "Essa história de Wilson Sândoli estar
no cargo há 37 anos me faz lembrar o futebol. Existem pessoas que estão
no comando - Ricardo Teixeira, Eduardo Farah - e ninguém sabe direito
como funciona o esquema que os sustenta nas posições de chefes há tanto
tempo", compara o músico.
O cantor Lobão considera a OMB uma "bagunça". "Fui admitido em 1975,
quando fiz o teste - que é uma vergonha - e, desde então, pago tudo em
dia. Os músicos, porém, não têm benefício nenhum com aquilo. Todo show
que faço é sempre uma tensão por causa daquelas notas contratuais, com os 
fiscais querendo saber quem está em dia com as anuidades", critica.

 As tais notas contratuais a que o compositor se refere são formulários
que todos os grupos musicais precisam preencher - informando o nome dos
integrantes e o número de inscrição na Ordem - para poder se apresentar
publicamente. Os fiscais só autorizam o show se todos os músicos
estiverem em dia com as anuidades. Do contrário, o espetáculo não pode
acontecer e, se ocorrer, a casa promotora do evento é multada.
"Um dia, fui pegar uma nota contratual para um show e não consegui. A
burocracia é tão grande que só o Sândoli pode assinar os documentos e,
como ele estava viajando, fiquei impossibilitado de tocar", relembra o
pianista Osmar Barutti, integrante do sexteto do Programa do Jô. "Não sou 
a favor da extinção da OMB, mas ela precisa ser um órgão moderno e que
contribua com a sociedade e a classe artística", opina.
Há dois anos, Barutti acompanhou Marcel Michelman numa visita à sede da
Ordem, quando o advogado foi requisitar ao órgão cópias de documentos e
contratos de artistas. "O Sândoli saiu da sala dele irritado, abrindo o
paletó, esticando o peito e berrando para o Marcel: 'Suma daqui,
desapareça, seu moleque!'", relembra o pianista, que na época estava com
uma anuidade atrasada.
No mesmo dia, Sândoli telefonou para outro integrante do grupo musical de 
Jô Soares, pedindo para que fosse dado um recado a Barutti. "Ele disse
que, se eu não quitasse a dívida, iria 'melar' meu contrato com a TV
Globo", conta o músico, que ainda era contratado do SBT.
Barutti pagou a anuidade, mas, logo em seguida, assim como outras
centenas de músicos, conseguiu na Justiça uma liminar que o isenta do
pagamento e o desobriga de ter qualquer vínculo com a OMB. "Acredito que
as coisas vão mudar. Tenho fé que essa nova geração vai se mobilizar", confia.
Em dezembro de 2000, diante dessa sinfonia de processos e liminares,
Sândoli editou uma brochura contendo um abaixo-assinado a seu favor, com
cerca de 1.500 assinaturas, e o distribuiu, via correio, para todos os
músicos do País. Embora contenha assinaturas de pessoas prestigiadas no
meio, o documento é altamente questionável.

O nome e a assinatura do baterista aposentado Edgar Teixeira estão
impressos no livro, mas ele só tomou conhecimento do documento quando o
recebeu em casa, já publicado. O mesmo aconteceu com o pesquisador Ronoel 
Simões, detentor do maior acervo sobre violão do planeta. "Aquele
documento é fajuto porque minha assinatura foi forjada. Eu nunca assinei
nada me declarando a favor da OMB", afirma Simões.
Questionado sobre a validade do abaixo-assinado, Sândoli brada: "É só o
músico dizer que não é a assinatura dele e me processar. O que eu vou
fazer? Me processe, estou pronto!"
Politicamente, há muito tempo, os responsáveis pela música brasileira não 
estão tocando no mesmo tom. Enquanto Sândoli tenta justificar a validade
das ações de sua longa gestão e a parte descontente da classe musical
busca se organizar, em Brasília, o deputado federal Rosinha (PT-PR) quer
ver aprovado seu projeto que visa à extinção da OMB - formulado a pedido
de artistas paranaenses. O documento já tramitou na Comissão de Trabalho
e Serviço Público da Câmara, mas foi rejeitado. Rosinha entrou com
recurso e luta para levá-lo a plenário.

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