Cupinzeiro: samba de verdade

Por Clóvis Tôrres

Domingo é dia de samba. Ao cair da tarde, um grupo de sambistas se junta no
quintal de uma casa, em Barão Geraldo, para tocar, compor e discutir samba.
A reunião é informal e contagiante... Geralmente quem foi, volta outras
vezes para cantar, tomar uma cervejinha, um caldo de feijão e contar muitas
histórias. Falamos do Núcleo de Sambistas e Compositores do Cupinzeiro,
fundado por jovens sambistas: Anabela, Edu de Maria, Bruno Ribeiro e Ênio
Bernardes, no ano passado e hoje reforçado por Daniel Romanetto, Charbel,
Lucas da Rosa, Aureluce e Eduardo Lobo.

Com cerca de dois anos de existência, o Núcleo tem atraído um número de
pessoas cada vez maior e, segundo os idealizadores do projeto, ampliado a
divulgação e a pesquisa do samba como movimento musical e também
sócio-cultural. Vale conferir, por exemplo os depoimentos de quem já esteve
por lá (www.samba-chora.com.br/casas/214).

Em entrevista exclusiva, Bruno Ribeiro, Anabela e Edu de Maria, alguns dos
principais fundadores do Núcleo comentam sobre a importância do samba como
elemento de socialização e expressão popular, em detrimento do "produto
cultural" imposto pela grande mídia. O Núcleo de Sambistas e Compositores do
Cupinzeiro é um exemplo que merece ser seguido, fortificado e multiplicado,
bem como o trabalho dos cupins.

Barão em Revista: Como se deu a criação do Núcleo de sambistas e
compositores?

Bruno Ribeiro: Tudo aconteceu naturalmente, mas desde o início sabíamos do
potencial que o samba tinha de aglutinar as pessoas em torno de uma causa
nobre, que é a luta em defesa da cultura popular brasileira. Mesmo tendo
começado com dez ou doze pessoas ao redor de uma mesa, tínhamos a convicção
de que o local se tornaria, em pouco tempo, num reduto de sambistas
reconhecido na cidade. Não esperávamos, talvez, que isto acontecesse em tão
pouco tempo. Embora a fundação do projeto tenha ocorrido no dia 29 de junho
de 2001, nós já vínhamos nos encontrando para tocar e cantar samba aos
domingos, na casa dos compositores Edu de Maria e Anabela, em Barão Geraldo.
Em princípio, pouca gente aparecia, só os vizinhos ou os amigos mais
chegados. Com a rápida adesão das pessoas, começamos a vislumbrar que ali
estava nascendo uma comunidade e resolvemos oficializar a fundação do Núcleo
de Sambistas e Compositores do Cupinzeiro. O nome veio por acaso, pois nós
reparamos que no local das rodas de samba havia um cupinzeiro - hoje extinto
depois que um jardineiro, desconhecendo a importância simbólica que o cupim
tinha para nós, jogou veneno nele. Hoje temos estandarte, uma comunidade
fiel que está sempre freqüentando as rodas, um grupo de nove músicos, sendo
que cinco são compositores e temos um samba gravado por um sambista de São
Paulo. Mas o Cupinzeiro, embora venha crescendo cada vez mais, continua fiel
aos seus princípios de se manter voltado apenas para a comunidade, se
bancando com recursos próprios e lutando para manter viva a tradição de
fazer samba sem fins comerciais.

B. R. Quantos são os "criadores" do Cupinzeiro e quantas pessoas participam
ou participaram de suas rodas?

Bruno: Os criadores são Edu de Maria, Anabela, Bruno Ribeiro e Ênio
Bernardes, que estavam nas primeiras discussões e encontros que originaram a
fundação do terreiro. Mas há outros nomes importantes, que estiveram conosco
desde o começo e que estão até hoje. São eles Daniel Romanetto, que também é
integrante do grupo Choro Bandido, Charbel da Cuíca, Aureluce, Lucas da Rosa
e Eduardo Lobo. Estes são, inclusive, os músicos que fazem parte das rodas,
aos domingos. A média de pessoas que participa das rodas é de cinqüenta a
cem pessoas por domingo, podendo chegar a mais de duzentas, como aconteceu
no aniversário de um ano. Impossível saber quantas pessoas já passaram pelo
local, mas seguramente foram mais de mil pessoas, neste um ano de projeto.

B. R. Qual é o saldo deste ano de trabalho e estudo? Muitas composições?

Bruno: O saldo é muito positivo. Conhecemos muita gente, fizemos amizades no
meio do samba, criamos laços afetivos entre nós que vão nos acompanhar por
toda a vida. Isto sem falar na satisfação de ver um samba nosso gravado e
cantado por muitas pessoas, em Campinas e em São Paulo. As composições não
param de nascer, em nosso caderno de músicas, distribuídos ao público, já
existem cerca de 30 sambas e muitos outros estão a caminho.

Edu de Maria e Anabela: As rodas nos estimulam bastante, e estamos sempre
compondo e pesquisando esta cultura que é um universo que envolve inúmeras
questões sócio-culturais que vão desde nossas matrizes étnicas até a lógica
de produção e de vida urbanas.

B. R. Como é compor um samba? Quais são as inspirações?

Bruno: Existe o samba que brota naturalmente, de uma brincadeira na mesa do
bar, por exemplo, aonde as frases vão surgindo e quando a gente percebe, já
está sendo cantado. O samba sobrevive muito dessa informalidade. Mas existe
também o samba que é fruto de um trabalho mais técnico, quando a gente se
senta com o propósito de desenvolver uma música sobre um tema e às vezes
passa a noite inteira debruçado sobre ele, tentando compreendê-lo e senti-lo
profundamente. Não existe um modo correto de compor um samba, acho até que
cada pessoa do Cupinzeiro tem um jeito próprio. As inspirações também são
muito pessoais, vêm da experiência de vida de cada um, das coisas que ela
ouve e gosta. O próprio cupinzeiro já nos inspirou diversos sambas. Aliás,
não são poucos os sambas que exaltam e fazem referências ao nosso terreiro.
É um tema que está sempre circulando entre os nossos compositores.

B. R. Existe a idéia de gravar um CD deste material ou algo já foi gravado
junto ao trabalho de outros sambistas? Ou o objetivo não é este também?

Bruno: Há o objetivo e estamos caminhando para isto. O problema é que, como
não visamos lucros com o samba, não temos condições financeiras de bancar a
gravação de um CD. Só agora, um ano depois, conseguimos juntar um caixa
razoável, fruto da contribuição dos próprios freqüentadores. Com este
dinheiro pretendemos gravar um CD ao vivo com os sambas que a comunidade
mais gosta de cantar.

Edu e Anabela: Tivemos a oportunidade de ter uma música do núcleo, composta
por Edu de Maria (música) e Bruno Ribeiro (letra), gravada no CD "Respeito
ao Samba", de Émerson Tomás "Urso".

Meu Coração Vacilou

Deixaste meu peito vazio
com tamanho egoismo
o frio me percorre por dentro
e ainda é verão
meu coração vacilou
e apostou na loucura
quis percorrer o deserto
e se perdeu na procura
deixaste o mundo inteiro
sem razão de ser
não sei qual o seu paradeiro
e nem quero saber
meu coração vacilou
quando acreditou em você
não apareça tão cedo
preciso me refazer

Agora eu sofro calado
e o mais certo é sofrer
eu já passei da idade
de me arrepender
não vou guardar essa mágoa
nem vou lhe procurar
o tempo refaz águas claras
e eu pretendo sorrir
quando lhe encontrar
. R. Atualmente, o carnaval distanciou-se muito de seu objetivo original. O
que poderia ser feito para resgatar o carnaval de rua de forma autêntica?

Bruno: É difícil ver uma saída, pois o carnaval atingiu proporções
comerciais de dimensões exorbitantes. Mas uma das alternativas que o povo
tem para reagir a qualquer tipo de dominação é a "organização". Temos que
nos organizar. O Cupinzeiro é um Núcleo organizado e independente que tem,
em curto prazo, a intenção de formar um bloco de rua para brincar o
carnaval. É para isto que estamos criando a comunidade e que, em breve,
estaremos trabalhando com crianças carentes da região. Crianças que,
futuramente, poderão ser instrumentistas, percussionistas, passistas do
Cupinzeiro. É a gênese de uma escola de samba popular.

Edu e Anabela: Historicamente, o carnaval deixou de ser uma manifestação
popular espontânea, justamente quando passou a ser controlado e
institucionalizado pelas prefeituras que, ao investirem na manifestação,
pretendem importar o modelo carioca, redefinindo fatores estruturais do
desfile, estabelecendo regras e colocando o carnaval dentro de um esquema de
dominação pública. Segundo relatos de antigos foliões, em Campinas, nas
décadas de 40 e 50, antes desta institucionalização, os blocos e cordões
chegavam a desfilar pelas ruas com aproximadamente 1000 componentes, prova
do grande envolvimento das comunidades em torno do carnaval. A recuperação
desta manifestação somente irá acontecer a partir da necessidade destas
comunidades em novamente se organizarem em torno do carnaval, encarando-o
não como uma competição que gera um prêmio, mas como um momento de
socialização e expressão popular.

B. R. Na sua opinião, de que forma o governo poderia contribuir com
políticas específicas para amenizar este apelo mercadológico?

Bruno: Não acredito, pois a mentalidade de qualquer governo também é lucrar
de alguma maneira com as manifestações populares. Para amenizar a perda de
identidade de nossas manifestações autênticas o governo poderia começar a
investir em leis de proteção à cultura nacional, enxergando-a como
patrimônio cultural do povo. Além, é claro, de garantir educação gratuita a
todos os brasileiros, com uma escola forte que fosse voltada para o Brasil.

B. R. A quantas anda o "Revivendo o Samba" em Campinas? Ele continua sendo
um grande aglutinador de pessoas na cidade?

Bruno: Tudo começou a partir do Revivendo o Samba, nascido nas rodas do
Centro Cultural Evolução, há dois anos. Alguns sambistas cariocas têm
passado pelo Centro, onde estão sendo acompanhados pelo Quarteto de Cordas
Vocais. Para Campinas é importante que estes eventos não deixem de
acontecer, pois coloca a cidade no roteiro de shows de samba e isto,
indiscutivelmente, é importante. A maior contribuição do Revivendo o Samba,
porém, foi ter dado o pontapé inicial para a formação de um público amante
de samba, gente que antes não sabia sequer quem era Paulinho da Viola e hoje
já canta até Geraldo Filme. No mais, o Revivendo o Samba tem um apelo mais
comercial, de apresentações em bares, enquanto que o Cupinzeiro lida mais
com a tradição da roda de samba em si, feita com a participação das pessoas,
que deixam de ser consumidoras de samba e passam a compreendê-lo em sua
essência mais profunda.

B. R. Vocês se relacionam com grupos de samba de outras cidades e estados
(São Paulo, Rio, Curitiba etc). Como se dá a troca de experiências?

Bruno: Nós temos um ótimo relacionamento com alguns projetos-irmãos, como é
o caso do Samba Autêntico (São Paulo) e o Samba na Veia (Rio de Janeiro),
entre outros, passando até por Florianópolis. Nós nos encontramos sempre que
possível para compor, trocar parcerias e, claro, fazermos uma roda de samba
juntos. Eles também são compositores, temos inclusive parcerias com gente de
São Paulo, como Emerson Urso, T. Kaçula, Alfredo Castro, entre outros.

B. R. Existe um verdadeiro movimento independe do samba que canta um país
mais autêntico e verdadeiro. Como se dá a comunicação e relação entre
grupos, público e espaços? Qual é o resultado destas atividades?

Bruno: O veículo mais importante para nossa organização tem sido a Internet,
através do site "Agenda do Samba & Choro" (www.samba-choro.com.br), ficamos
sabendo de encontros, rodas e eventos de nosso interesse. Há um intercâmbio
muito bom entre os projetos. No nosso aniversário de um ano, por exemplo,
recebemos a visita dos fundadores do Samba da Vela, como o Paqüera, que é
uma espécie de Candeia de nossos tempos. Nós ficamos muito honrados com a
presença dele, o que prova que há uma comunicação "subterrânea" acontecendo.
Em São Paulo e no Rio já existem espaços dedicados ao "samba de raiz", mas
nós repudiamos e lutamos contra este rótulo porque é mais um filão de
mercado que os conglomerados industriais do disco estão tentando criar para
ampliar seus domínios. Se o "samba de raiz" for apropriado pela mídia vai se
tornar outro "pagode", diluído e modificado para atender aos desejos do
mercado imediatista. Estas bandeiras costumam ser levantadas por todos os
projetos e estes temas são debatidos nos encontros. Por isso dizemos apenas
"samba", que é o nome correto da nossa manifestação cultural. O resultado, é
que ampliamos, em dois anos, o interesse das pessoas em relação ao samba.
Estão pipocando nas universidades trabalhos e teses sobre os nossos
projetos, com referências e citações inclusive ao Cupinzeiro, de Campinas.
Nas periferias de São Paulo, as comunidades estão fortalecidas cada vez mais
devido à presença desses núcleos, pois não se faz apenas samba, mas se
exerce a cidadania ao lidar com fatores como respeito (geralmente se faz
silêncio quando um compositor ou uma pessoa da roda está falando) e
conhecimento (discute-se temas de interesse para a comunidade, referentes
inclusive à sua história e à cultura de seus antepassados), entre tantos
outros.

B. R. O que o samba precisa ter para ser considerado "samba autêntico"?

Bruno: Isso é uma discussão complicada que pode render muita polêmica.
Entendemos por autêntico tudo o que é espontâneo. No caso do samba, que seja
do povo e feito para o povo, com a única finalidade de continuar mantendo
viva a cultura de seu lugar. No aspecto musical, buscamos valorizar a
autenticidade dos instrumentos que eram, originalmente, usados nas rodas de
samba antes de Cacique de Ramos, nos anos 80, quando aboliu-se o surdo e
implantou-se instrumentos como tantã, repique, banjo, entre outros. Queremos
recuperar o surdo, a frigideira, o prato e faca, a cuíca. Não que o tantã e
o banjo, por exemplo, sejam prejudiciais ao samba, mas nós buscamos
redescobrir o modo de se tocar e cantar samba quando ele era menos corrido e
se valoriza a poesia nas letras.

B. R. Quais são os sambistas preferidos de vocês e como eles os influenciam?

Bruno: Cada um possui referências distintas, mas há compositores que acabam
sendo unânimes entre nós. No Cupinzeiro, cultua-se muito a memória de
Candeia, até porque existe muita afinidade ideológica entre o Quilombo e o
que tentamos fazer no Cupinzeiro. Além dele, cantamos muito Nelson
Cavaquinho, Cartola, Nei Lopes, Paulinho da Viola, Silas de Oliveira,
Geraldo Filme, entre outros, que nos influenciam até mesmo
inconscientemente. Nós ouvimos tanto os sambas desses compositores que
acabamos assimilando algumas características melódicas e poéticas presentes
em suas obras.

B. R. Cite um trecho do samba que você considera mais bonito, profundo ou
representativo em sua história de vida.

Bruno: É a frase de Candeia, presente no samba Dia de Graça:

(...)

Negro, acorda, é hora de acordar
Não negue a raça
Torne toda manhã
Dia de graça.

Negro, não se humilhe
Nem humilhe a ninguém
Todas as raças
Já foram escravas também.

Deixa de ser rei só da folia
E faça da sua Maria
Uma rainha de todos os dias
E cante um samba na universidade
E verás que teu filho será
Príncipe de verdade.

Aí então
Jamais tu voltarás
Ao barracão.

B. R. O fato de você (Bruno) ser jornalista contribui para ganhar espaço
maior na mídia na divulgação do samba como estilo musical de resistência
cultural?

Bruno: De certa forma, porque o jornalismo cultural, infelizmente, tem se
tornado uma espécie de agendão de eventos. As discussões e os debates do que
realmente importa se perderam. Eu dou muito espaço para o samba, até porque
o gênero não é tão divulgado quanto deveria. Porém, não acredito que os
jornais sejam tão importantes para esses projetos e esses novos sambistas,
pois eles já aprenderam que a liberdade não tem preço. Saber se virar sem
depender do poder público, de imprensa e de gravadoras é um traço
revolucionário indispensável para a longevidade dos projetos.

B. R. O que você acha da abordagem que os cadernos culturais da "grande
mídia" fazem do carnaval e do samba?

Bruno: Muito ruins, pois o desconhecimento em relação ao samba é terrível. O
que impera é sempre o senso-comum e o preconceito. Samba não é só gênero
musical. É, como toda manifestação popular, formada por outras
características, como, por exemplo, um modo próprio de ver e estar no mundo,
uma filosofia de vida. Mas o samba não entra na mídia, o que entra é apenas
o que os jornalistas entendem por samba.


Para saber mais sobre o mundo do samba, acesse a Agenda do Samba & Choro:
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Núcleo de Sambistas e Compositores do Cupinzeiro
Rua Rua Virgílio Dalbem, 244 - Barão Geraldo. Campinas/SP
Mais informações pelo telefone 19 - 3249 0422 ou e-mail:
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Clóvis Tôrres é jornalista, ator, dramaturgo e assessor de imprensa do
Sinpro Campinas e Região e Apropucc.

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