Tribuneiros da velha cepa

Com atraso, mas com o mesmo entusiasmo dos que me antecederam, presto
minha modesta e sincera homenagem ao dia do herói Zumbi dos Palmares,
reproduzindo uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, ao eterno Cartola.

Copiei o texto (e me perdoem algum erro), dum trabalho espetacular feito
por Carlos Machado em homenagem aos 100 anos de Drummond, enviado
diariamente por e-mail a alguns privilegiados, como este tribuneiro.

Aurélio Prieto
São Paulo
Capital


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Cartola, no moinho do mundo


Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado
lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é
preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a
passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca.
Estaca e fica ouvindo.

Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.

Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos,
onde alguém se lembrou de reviver o samba de Cartola; Na Floresta (música
de Sílvio Caldas).

Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude
dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir.
Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e
se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: "Tenho um novo amor", é
como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras
flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o
sol, a incessante primavera.

A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os
descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem
observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto
senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não
coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e
lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a
centelha, não o afetou, não fez dele um homem  ácido e revoltado. A fama
chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com
cortesia. Os dois  convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de
Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade
criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.

Em Tempos Idos, o Divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o
histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua
participação eficiente:

Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.

Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no
Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da
Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro,
representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao
gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro
Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor; reconheceu,apenas, o que há
de inventividade musical nas camadas mais humildes da nossa população.
Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.

* * *

Mas então fiquei parado, ouvindo aa filosofia céptica do Mestre Cartola,
na voz de Silvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha que
cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e
a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara
e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito
ferido para dizer essas coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par
feliz com Dona Zica, e às vezes a televisão vai até  a casa deles, mostra
o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre
coisas da vida. "O Mundo é um moinho..."  O moleiro não é ele, Angenor,
nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda,
trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns,  como Cartola, são trigo
de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo
e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não
direi o divino, mas humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do
samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e "fui à vida",
como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma
companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar lirismo a sua
vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia,
essa iluminação.

Carlos Drummond de Andrade

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Esta crônica não está em nenhum livro de Drummond. É um tributo ao
compositor mangueirense Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), e tem
uma história curiosa. Foi publicada no Jornal do Brasil em 27/11/1980,
três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não Falam".

Ao saber que Cartola estava doente, Drummond decidiu escrever-lhe uma
homenagem. "Em seus derradeiros momentos de lucidez, em sua cama no
hospital, Cartola ainda pode lê-lá, transformando-a em sua última
felicidade", conta o jornalista e pesquisador musical Arley Pereira, autor
do livro Cartola - 90 Anos.

Embora reservado e totalmente avesso às freqüentações públicas, Drummond
acompanhava com grande interesse as manifestações da cultura popular, o
que pode ser claramente observado nesta crônica.

Ele também ficou muito satisfeito, em 1980, quando Martinho da Vila (com
Rodolfo de Souza e Tião Graúna) compôs para a escola de Vila Isabel o
samba-enredo "Sonho de um Sonho", baseado em poema homônimo de sua autoria
(de Claro Enigma, 1951).

Neste 20 de novembro, dia do herói Zumbi dos Palmares, com esta crônica em
que Drummond evoca os grandes Cartola, Pixinguinha e Carlos Cachaça,
estendo a homenagem a todos os artistas negros do país, sem esquecer, já
que o nosso foco é o texto, o mestre Machado de Assis.

Mas uma vez, todos nós ficamos em débito com a colega jornalista Marta
Alves, por ter desentranhado das névoas do passado esta delícia de crônica.

Carlos Machado
[EMAIL PROTECTED]

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