Joao Marcos <botoc...@gmail.com> escreveu:

> [...]
>
> Recebi da Cláudia Nalon, entretanto, um link para um artigo
> relacionado e bem mais interessante: uma entrevista com Abraham
> Fraenkel, que apareceu no seu livro de memórias publicado recentemente
> em inglês (com um pouco mais de 50 anos de atraso).
>
> Hitler’s Math
> http://www.tabletmag.com/jewish-arts-and-culture/224161/hitlers-math
>
> Vale a pena observar o depoimento elogioso de Fraenkel a respeito de
> Hilbert e Landau, que possivelmente lhe fizeram nutrir simpatia pelo
> formalismo, e sua crítica política a Brouwer e idiotas como Ludwig
> Bieberbach (fundador da "Deutsche Mathematik"
> https://de.wikipedia.org/wiki/Deutsche_Mathematik), que eventualmente
> levaram Fraenkel a abominar o intuicionismo.

Por que você acha que questões pessoais, éticas e/ou políticas teriam
influenciado a atitude de Fraenkel com relação ao formalismo ou ao
intuicionismo?  Você leu isso em algum lugar, ou é apenas uma impressão
sua?

Dei uma olhada na edição alemã das memórias do Fraenkel aqui na
biblioteca e não consegui achar nada que indicasse isso... Pelo
contrário, pelo menos na passagem reproduzida no artigo que você
indicou, Fraenkel diz que o intuicionismo é "importante", "original" e
"interessante".  Contudo, ele censura implicitamente *o comportamento de
Brouwer* e critica sua abordagem dogmática e mística do intuicionismo
(enquanto elogia implicitamente o comportamento de outros
construtivistas como Weyl).

Esse negócio de julgar ideias com base em quem as professa é muito
curioso.  Algo que, inclusive, estava no centro dos movimentos pela
"Deutsche Mathematik" e "Deutsche Physik".  Assim, é possível que as
motivações por trás das críticas do "Círculo de Munique" fossem de
caráter ideológico nazista (esse círculo girava em torno de Hugo
Dingler[1] que na sua empolgação com o socionacionalismo alemão chegou
a ser denunciado por usar emblema da NSDAP antes de ser formalmente
aceito no partido): atacavam a teria da relatividade (Einstein era
judeu), a escola de Hilbert (Hilbert era "protetor" de judeus) e etc,
embora essas motivações geralmente não estivessem explícitas e as
críticas fossem feitas no âmbito teórico.

O interessante é que Heinrich Scholz, elogiado por Fraenkel nas
referidas memórias e amigo próximo de Fraenkel até a sua morte,
*publicou artigo na Deutsche Mathematik*.  Esse foi um artigo em defesa
da escola hilbertiana contra os ataques do Círculo de Munique
(especialmente Max Steck), um artigo escrito à convite do "idiota"
Bierberbach, que, neste caso, pode ter contribuído para que o centro de
pesquisas liderado por Scholz em Münster (um dos poucos em território
alemão após a decadência de Göttingen) não sofresse consequências de
motivação ideológica.  Esse artigo do Scholz foi inclusive resenhado por
Bernays no "Journal of Symbolic Logic".

O ambiente na matemática e, particularmente, na lógica durante o período
nazista é discutido em detalhes no livrinho de Eckart Menzler-Trott,
"Gentzens Problem", particularmente no capítulo 4, "A briga por uma
lógica alemã".  Contudo, alguém comentou comigo que a edição em língua
inglesa (à qual não tenho acesso) foi editada num formato mais puramente
biográfico, com discussões sobre o socionacionalismo removidas completa
ou parcialmente.  Vale lembrar que algumas coisas ali são mesmo
controversas.  Quando se trata desse tipo de assunto, as coisas nunca
são tão preto no branco.  Em geral, intelectuais e acadêmicos são
comumente desligados de questões políticas e são facilmente manipuláveis
ideologicamente, isso quando não são ativamente oportunistas.  Os poucos
que arriscam arregaçar as mangas nesse quesito, pagam muitas vezes um
preço caro em termos de suas carreiras, e podem mesmo acabar na cadeia
(como aconteceu com Bertrand Russel e Michael Dummett).

Interessante ainda é que a questão que provocou essa discussão, a da
"decadência da matemática alemã" após a segunda guerra, apresenta como
pressuposto implícito uma ligação entre nação e ciência, à exemplo da
ideologia nazista.  Muita gente acha que o problema principal com o
socionacionalismo alemão eram coisas como o Rassengünther[2] e campos
de concentração.  Esquecemos que o nacionalismo em si mesmo é
problemático, embora seja normalmente tolerado ou mesmo visto com bons
olhos.


Notas:

[1]  https://de.wikipedia.org/wiki/Hugo_Dingler

[2]  https://de.wikipedia.org/wiki/Hans_F._K._G%C3%BCnther

-- 
Hermógenes Oliveira

"Just publish it.  If you're afraid that the population will be seduced
by it, you have bigger problems than the book."  Someone on the
availability of Hitler's "Mein Kampf" on German book stores after the
expiration of the copyright in 2016.

-- 
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos 
Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um 
e-mail para logica-l+unsubscr...@dimap.ufrn.br.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para logica-l@dimap.ufrn.br.
Visite este grupo em https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/group/logica-l/.
Para ver esta discussão na web, acesse 
https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/8760kdalyk.fsf%40camelot.oliveira.

Responder a