Oi, Samuel, obrigado pela gentileza das suas respostas anteriores que eu
não comentei muito diretamente. :-)

Agradeço também ao Daniel por oferecer mais elementos para a discussão.
Obrigado! :-)

Tenho um amigo que escreveu recentemente um livro sobre como ZFC se
infiltra no solo e contamina toda a matemática que cresce nesse solo
(contamina no bom sentido, de permitir que se escreva a matemática com essa
linguagem). O livro começa com uma sentença mais ou menos assim (citando de
memória): "a matemática tem dois aspectos essenciais, lógica e linguagem".

Pois bem. Ao meu ver, é um paradigma, exatamente o paradigma predominante.

Eu olho a coisa sob outro ponto de vista, o paradigma "intuicionista fraco"
(inventei esse nome agora), cujos fundamentos seriam as três afirmações
anteriores de Brouwer mais as três seguintes (seriam seis postulados
epistemológicos, digamos assim):

(a) A matemática lida com construções mentais, que são imediatamente
apreendidas pela mente; matemática não consiste na manipulação formal de
símbolos, e o uso da linguagem matemática é um fenômeno secundário,
induzido por nossas limitações (quando comparadas com um matemático ideal
com memória ilimitada e perfeita), e o desejo de comunicar nossas
construções matemáticas para outros;

(b) Não faz sentido pensar em verdade ou falsidade de uma afirmação
matemática independentemente de nosso conhecimento sobre a afirmação. Uma
afirmação é verdadeira se tivermos uma prova dela, e falsa se pudermos
mostrar que a suposição de que existe uma prova para a afirmação leva a uma
contradição. Para uma afirmação arbitrária, portanto, não podemos afirmar
que ela é verdadeira ou falsa;

(c) A matemática é uma criação livre: não é uma questão de reconstruir
mentalmente, ou compreender a verdade sobre objetos matemáticos que
existiriam independentemente de nós (isso está em contraste com, por
exemplo, os empiristas franceses; cf. 4.2).

(TROELSTRA e van DALEN, Constructivism in Mathematics. An Introduction, p.
4)

Pela cláusula (a) acima, a linguagem não é tão importante assim para a
matemática... Na verdade, a linguagem às vezes cria embaraços e nos deixa
atolados em paradoxos e nos faz perder muito tempo com preciosismos... Por
isso, muitas vezes os físicos colaboram mais para o surgimento de
matemática nova do que os próprios matemáticos, já que eles não se importam
nem um pouco com as regras da linguagem e inventam as coisas de que
necessitam (função delta de Dirac, por exemplo). Também a lógica não pode
ser assim tão decisiva, pois ao menos para Brouwer, a lógica é que deriva
da matemática (esse ponto do pensamento de Brouwer não é capturado nessa
síntese de Troelstra e van Dalen).

A cláusula (b) joga fora a lei do terceiro-excluído, e assim batemos de
frente com o paradigma dominante, em que a lógica clássica é "subjacente".

Finalmente, a cláusula (c) força-nos a uma colisão com o platonismo e o
realismo, e por essa via colidimos também com o paradigma dominante.

Eu chamo esses 6 postulados de "intuicionismo fraco" pois não precisamos do
pacote completo das ideias filosóficas de Brouwer e seus seguidores, estes
6 pontos bastam.

Com isso, podemos praticar matemática em diferentes ambientes, e lidar com
criaturas que precisam ser banidas em ZFC para preservar a lógica clássica.

E uma vez que ZFC necessita banir certas criaturas matemáticas inteiramente
legítimas, embora marginais do ponto de vista da "ciência padrão" (Kuhn),
não pode conter toda a matemática. Pode conter apenas os ramos considerados
principais na atualidade...

Agora se acabaram de vez meus dois centavos... :-)

M.

Em seg., 7 de ago. de 2023 às 14:45, Samuel Gomes da Silva <sam...@ufba.br>
escreveu:

> Caros,
>
> A mensagem do Cassiano eu preciso digerir mais, hehe,
>
> Daniel, sua analogia com "geometria é álgebra" é pertinente sim,
>
> E na verdade me lembrou do prefácio de um excelente livro de graduação de
> Teoria dos Conjuntos, o do Enderton: se não me falha a memória, vai na
> seguinte linha:
>
> "Todo matemático, em geral, escolhe uma das seguintes alternativas:
>
> A matemática está inteiramente internalizada na Teoria dos Conjuntos;
>
> A matemática pode ser inteiramente internalizada na Teoria dos Conjuntos;
>
> A matemática deve ser inteiramente internalizada na Teoria dos Conjuntos"
>
> Apesar do que alguém poderia pensar, mesmo com o meu "matemática é ZFC",
> eu tendo a pensar mais pela segunda alternativa, talvez nesse espírito de
> "ambiente de trabalho".
>
> (E como pintura do cachimbo, claro...)
>
> Abraços
>
> []s Samuel
>
> PS: Ah sim, isso de "geometria é álgebra"
> tem a haver com a internalização da geometria dentro da álgebra, aí da
> mesma forma a pessoa pode decidir entre "está", "pode ser", "deve ser"...
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
> ----- Mensagem original -----
> De: Daniel Durante <durant...@gmail.com>
> Para: LOGICA-L <logica-l@dimap.ufrn.br>
> Cc: marciopalmares <marciopalma...@gmail.com>, LOGICA-L <
> logica-l@dimap.ufrn.br>, samuel <sam...@ufba.br>, Petrucio Viana <
> petrucio_vi...@id.uff.br>, Daniel Durante <durant...@gmail.com>, Marcos
> Silva <marcossilv...@gmail.com>, Grupo de pesquisa CLEA <
> pina...@googlegroups.com>, valeria.depaiva <valeria.depa...@gmail.com>,
> Cassiano Terra Rodrigues <cassiano.te...@gmail.com>
> Enviadas: Mon, 07 Aug 2023 10:41:05 -0300 (BRT)
> Assunto: Re: ao
>
> Oi Marcio e colegas,
>
> Eu acho, Marcio, que quando Samuel fala que a matemática é ZFC, ele não
> está querendo dizer isso literalmente, no sentido de que os números são
> certos conjuntos e que as funções são conjuntos de pares com certas
> propriedades,... Ele está falando de um jeito menos literal. Os números
> são
> qualquer coisa que se comporte como aqueles conjuntos se comportam em ZFC
> e
> as funções são qualquer coisa que se comporte como aqueles conjuntos de
> pares se comportam em ZFC.
>
> Porque veja, junto com dizer que a matemática é ZFC ele diz também que ZFC
> não tem modelo canônico e que a matemática não são nem as regras do jogo,
> nem os diversos tabuleiros onde o jogo é jogado - nem os axiomas de ZFC,
> nem seus muitos modelos.
>
> A matemática não é a formalização de ZFC e também não é cada uma das
> possíveis estruturas que verificam os axiomas. A matemática seria aquilo
> que todas as estruturas que verificam os axiomas têm em comum.
>
> Aí, cabe tanto os matemáticos contemporâneos que nem sabem quais são os
> axiomas de ZFC, mas que os respeitam, porque vivem em (jogam) versões
> desse
> jogo, ainda que talvez nem saibam disso. E cabe também, em certo sentido,
> os matemáticos do passado que também jogavam versões desse jogo sem saber.
>
> Talvez, se a gente procurar na história, a gente encontre os momentos em
> que as regras do jogo foram se estabelecendo, e o jogo foi sendo
> consolidado. Nessa visão dá para entender até o protesto de Valéria, por
> exemplo, que nos lembrou que muitos matemáticos se recusam a utilizar o
> axioma da escolha e se limitam a jogadas que cabem em ZF, uma versão
> simplificada do jogo.
>
> E protestos desse tipo ajudam também a explicar e acomodar as abordagens
> fundacionais alternativas. Qual seria a principal motivação de quem pensa
> em fundar a matemática na Teoria das Categorias, ou na Teoria dos Tipos?
> Eu
> acho que a principal motivação é ajustar o JOGO para alguma divergência
> que
> não se encaixa perfeitamente em ZFC.
>
> Acho que um bom exemplo para entender isso é a relação da geometria com a
> álgebra. Veja, não sou matemático e se eu tiver falando bobagem, vocês
> simplesmente desconsiderem. Mas vejo a afirmação de que a matemática é ZFC
> de um modo paralelo à afirmação de que a geometria é álgebra.
>
> Em um certo sentido, isso está correto. Que eu saiba, não há nada na
> geometria que não caiba na álgebra, no sentido de que não há nenhum
> resultado geométrico que não tenha contrapartida algébrica. Então, em um
> sentido matemático, de resultados, geometria é álgebra. Mas é claro que
> Euclides, ou os geômetras de régua e compasso não são algebristas e não
> estavam fazendo álgebra. É claro que conseguimos entender certas
> estruturas, relações e conceitos muito melhor e mais claramente na
> geometria que na álgebra, que todos temos intuições geométricas, mas que
> só
> alguns poucos de nós, matematicamente treinados, têm as intuições
> algébricas equivalentes.
>
> Então, em um outro sentido muito forte, geometria não é álgebra. Mas esse
> outro sentido muito forte, não é o sentido matemático. Em um sentido
> matemático, de resultados matemáticos, geometria é álgebra.
>
> Então, pensando nesses termos, eu concordo com a tese de Samuel de que a
> matemática é ZFC. Mas isso não me impede de concordar se o Eduardo Ochs ou
> alguém da teoria das categorias me disser que a matemática é Teoria das
> Categorias ou outra teoria qualquer, desde que as eventuais divergências
> extensionais entre a teoria nova e ZFC sejam convincentemente justificadas.
>
> Não sei se o Samuel, que é o "pai da criança", enxerga sua própria
> abordagem desse jeito. Mas é assim que eu vejo. E nesses termos, eu
> concordo com ela.
>
> Saudações,
> Daniel.
>

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