Olá, Elaine.

Em domingo, 7 de janeiro de 2024 às 11:27:00 UTC-3, Elaine Pimentel 
escreveu:

Oi, Hermógenes!

 no Brasil as coisas infelizmente ainda funcionam sob o pressuposto de que 
o cuidado das crianças é responsabilidade da mãe.


E, na maioria dos casos, é mesmo!


Sem dúvida! 

Contudo, convém atentar para quando políticas públicas deixam de apenas 
adequar ao cenário social presente e passam a reforçá-lo ou 
retroalimentá-lo.
 
Não é mais tão incomum ver papais cuidando de crianças pequenas. Também não 
me parece justo que políticas públicas (além de pressão social e etc.) 
continuem contribuindo para encurralar mulheres nesta função quando, em 
muitos casos, seria mais propício um arranjo diferente.

No Brasil, a licença paternidade é irrisória e a licença maternidade dura, 
via de regra, apenas 120 dias, o que mal cobre o período recomendado de 
aleitamento materno. Mas suponhamos, por um momento, que exista uma licença 
para cuidado de crianças um pouco mais generosa. Mantê-la como licença 
maternidade apenas reforçaria a mãe no papel de cuidadora, mesmo para 
famílias nas quais outro arranjo seria preferível, simplesmente porque a 
mãe é a única que pode usufruir de licença.

Isto foi apenas um exercício hipotético que pouco afeta o que acredito ser 
a medida correta tomada pelo CNPq neste momento. O objetivo é chamar a 
atenção para alguns pontos relacionados.

No caso da Alemanha, que conheço mais de perto, as semanas de licença para 
cuidado da criança retiradas pelo pai possuem o mesmo peso daquelas 
retiradas pela mãe frente a agências de fomento, como a DFG.


Nos casos que conheço de colegas alemães, os pais tomam, de fato, a licença 
a sério e se recusam a fazer qualquer atividade formal (além de dar aulas é 
claro, mas também escrever artigos, participar de congressos, submeter 
projetos, fazer revisões de artigos e projetos...). No Brasil conheço 
muitos poucos casos assim. Na verdade, conheço só um. 

Tenho um colega italiano, esposa também italiana, que disse que o melhor 
momento produtivo dele foi quando a mulher teve filhos, porque ele pode 
trabalhar mais. Ela nunca conseguiu uma posição na academia. Ele sim. 

Que tal a reflexão: quantas mulheres a gente conhece que tiveram filhos 
antes de conseguir um emprego na academia? Quantas mulheres conseguiram 
seguir com sua pesquisa após terem filhos? 

Acho que o simples fato de essa pergunta fazer sentido (como posta), e 
pouco ou nenhum se trocarmos para "homens" diz muito sobre o problema. Que 
é complexo, então não há análise simples.


É patente que mulheres são muitíssimo mais afetadas. Quase que 
exclusivamente afetadas, na verdade. Contudo, ao menos no que concerne este 
fator específico (existem outros fatores que desfavorecem pessoas do gênero 
feminino, claro), o impacto desproporcional ao gênero feminino passa, 
dentre outras coisas, pela expectativa (muitas vezes reforçada por 
políticas públicas) de que o cuidado (de crianças, idosos, incapacitados e 
etc.) é reduto da mulher. Creio que todos, incluindo homens e mulheres, 
possam ser beneficiados por um arrefecimento do poder destes estereótipos. 
Infelizmente, trata-se de algo muito arraigado. Mundo afora.

Antes da minha pequerrucha nascer, li, não me lembro onde, algo escrito 
pela Holly Krieger <https://en.wikipedia.org/wiki/Holly_Krieger>. Ela dizia 
ficar agradecida sempre que seus colegas homens mencionavam sua vida 
familiar num contexto profissional, tal como "Não posso participar da 
reunião de departamento nesse horário, pois tenho que cuidar do meu filho". 
Achei interessante e depois que minha filha nasceu, faço um esforço 
consciente para não omitir sua existência do meu espaço profissional, o que 
é sempre a minha inclinação inicial (isto com respeito a todos aspectos da 
minha vida particular). Tem sido bastante revelador observar as reações. As 
mais comuns são: perguntar casualmente (tangencialmente?) pela minha esposa 
🙄; entender que estou reclamando da minha condição de pai (curiosamente, 
seu eu digo que não posso fazer algo por estar doente ou preciso comparecer 
ao tribunal, ninguém assume, sem mais, que estou reclamando da vida).

Minhas colegas mulheres estão certamente em condições muito piores e têm 
toda a minha admiração. Ambientes de trabalho em geral não são muito 
tolerantes à presença de crianças, o que é compreensível. Mas na academia 
parece haver ainda um certo estigma associado a elas. Algumas colegas 
chegam mesmo a esconder do espaço profissional o fato de serem mães. E o 
estereótipo de gênero está sempre presente. Volta e meia, preciso 
participar de reunião com a pequena no colo: eu recebo perguntas sobre a 
minha esposa, enquanto minhas colegas mulheres que eventualmente trazem 
crianças para as reuniões recebem comentários casuais sobre o horário de 
funcionamento de creches (nada de "Como vai o seu esposo? Está 
trabalhando?"). Durante a pandemia, fui hostilizado por aluno que ficou 
incomodado com os ruídos envolvidos nos cuidados da minha filha durante 
minhas aulas remotas (Cafofo sem escritório aqui. Também levando em conta 
este episódio desagradável, não liguei o microfone para fazer minha 
pergunta no encontro recente em Bristol, pois a pequena estava cantando 
amavelmente em alto e bom som, e ninguém conseguiria escutar minha pergunta 
mesmo). Acho que os colegas conhecem os episódios lamentáveis durante a 
pandemia de mães sendo hostilizadas por patrões, juízes e/ou colegas de 
trabalho por estarem amamentando ou cuidando da prole durante 
videochamadas. Eu pude usar efetivamente do machismo arraigado para 
convencer minha esposa a vagar pelas ruas desertas com a criança no colo 
nos dias de aula com o tal cidadão. O mesmo não está disponível a uma 
mulher que amamenta.

Dado o contexto brasileiro, as medidas anunciadas pelo CNPq provavelmente 
afetarão apenas as mães (ou talvez também pais com guarda exclusiva).


É um começo! Importante, porque atinge a maioria dos casos.


Sim, eu diria que não apenas é um começo, como o correto, dado o cenário 
nacional atual. Uma situação mais ideal, como a que observamos com a DFG, 
apenas faz sentido quando em consonância com as demais políticas públicas 
em geral, como ocorre na Alemanha, mas não no Brasil.

Acho que parte da tarefa de tornar o ambiente trabalhista brasileiro (não 
só o acadêmico) um pouco mais adequado para pessoas com filhos passa por 
uma reorientação das políticas públicas ao contexto familiar atual, onde 
pais participam ou desejam participar de maneira equitativa no cuidado dos 
filhos e famílias nas quais o cuidado das crianças é exercido por casais 
homossexuais, para citar apenas alguns exemplos.


Concordo. Isso vai levar uma vida. Como a gente tem que começar de algum 
lugar, que tal do mais óbvio? :)
 

O contexto brasileiro é bem distinto. Afinal, a situação de um novo pai com 
uma rede de suporte local, uma esposa, uma babá e um escritório com 
isolamento acústico dentro de casa é muitíssimo diferente daquela de uma 
mãe solteira sem família num raio de mil quilômetros e que more num cafofo 
de 50 m². Sabemos que temos colegas na universidade em ambos estes 
extremos, bem como em diversos outros pontos no espectro.


Pra qual lado você acha que a balança pende mais? Eu diria que raramente 
pra babá e escritório com isolamento acústico, ao menos no nosso ambiente 
brasileiro.


Eu diria que o papai hipotético no seu escritório, na verdade, está em 
condições invejáveis para *alavancar* a sua carreira, nos moldes do seu 
colega italiano.

--
Hermógenes Oliveira

-- 
LOGICA-L
Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de Lógica 
<logica-l@dimap.ufrn.br>
--- 
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos 
Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um 
e-mail para logica-l+unsubscr...@dimap.ufrn.br.
Para acessar esta discussão na web, acesse 
https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/a2736198-009a-42a7-b492-a5399205d19dn%40dimap.ufrn.br.

Responder a