A melhor exposição que eu conheço sobre esse tema aparece no livro "What is
Mathematics, Really?", do Reuben Hersh. O autor traça um amplo panorama
histórico mostrando como o platonismo/realismo deriva quase diretamente da
religião, e como essa forma sofisticada/disfarçada de religiosidade permeia
a prática da matemática em todos os níveis, principalmente no
ensino/difusão dessa ciência... Há um fundamento sociológico, histórico,
uma inércia cultural, que faz com que, ainda hoje, o expositor de
matemática (às vezes involuntariamente) reproduza as formas místicas com as
quais os conteúdos eram embalados no passado, com o fim de preservá-los em
círculos restritos.

Um exemplo: acho que li no Morris Kline, não lembro mais, que Newton
escolheu uma forma geométrica clássica, austera, de exposição nos Principia
Mathematica para afugentar amadores e se ver livre de novas controvérsias
sobre prioridade... O texto era praticamente ilegível na época..

A forma de exposição "misteriosa", especialmente nas demonstrações, difícil
de seguir, onde toda referência aos processos heurísticos ou à gênese dos
conceitos é omitida, é instituída já na Antiguidade e praticada
especialmente por Arquimedes. Sabe-se, agora, contudo, que Arquimedes tinha
um "método" de descobertas que envolvia trabalho manual, experimental, algo
que convinha ocultar, pois todo trabalho manual era relegado aos escravos e
visto como degradante.

Há uma controvérsia sobre este tema (a maior ou menor influência da
escravidão na formação desse elitismo)... Alguns autores divergem dessa
interpretação (eu considero como a mais plausível). Entre as visões
divergentes, a mais criativa que encontrei foi essa, do Isaac Asimov:

"O PROCESSO DEDUTIVO

Elaborar um corpo de conhecimentos como consequência inevitável de um
conjunto de axiomas (“dedução”) é um jogo atraente. Os gregos se
apaixonaram por ele, graças ao sucesso de sua geometria — apaixonaram-se a
tal ponto que cometeram dois erros graves.

Primeiro, passaram a considerar a dedução como o único meio respeitável de
se alcançar o conhecimento. Estavam bem conscientes de que, para certos
tipos de saber, a dedução era inadequada; por exemplo, a distância entre
Corinto e Atenas não podia ser deduzida a partir de princípios abstratos,
mas precisava ser medida. Os gregos estavam dispostos a observar a natureza
quando necessário; no entanto, sempre se envergonhavam dessa necessidade e
consideravam que o mais elevado tipo de conhecimento era aquele obtido por
meio da pura atividade mental. Tendiam a subestimar o saber diretamente
ligado à vida cotidiana. Conta-se que um discípulo de Platão, recebendo
instruções matemáticas do mestre, acabou perguntando impacientemente: “Mas
para que serve tudo isso?” Platão, profundamente ofendido, chamou um
escravo e, ordenando-lhe que desse uma moeda ao aluno, disse: “Agora você
não precisa mais sentir que sua instrução foi inteiramente inútil.” E, com
isso, o estudante foi expulso.

Há uma crença muito difundida de que essa visão elevada surgiu da cultura
grega baseada na escravidão, em que todas as questões práticas eram
relegadas aos escravizados. Talvez seja verdade, mas inclino-me a pensar
que os gregos viam a filosofia como um *esporte*, um jogo intelectual.
Muitas pessoas consideram o amador nos esportes como um cavalheiro
socialmente superior ao profissional que ganha a vida com isso. Em
consonância com esse ideal de pureza, tomamos precauções quase ridículas
para garantir que os competidores nos Jogos Olímpicos estejam livres de
qualquer mácula de profissionalismo. A racionalização grega para o “culto
da inutilidade” pode ter tido base semelhante: a ideia de que permitir que
o conhecimento mundano (como, por exemplo, a distância entre Atenas e
Corinto) invadisse o pensamento abstrato seria permitir que a imperfeição
penetrasse no Éden da verdadeira filosofia. Qualquer que tenha sido a
racionalização, os pensadores gregos foram seriamente limitados por essa
atitude. A Grécia não foi estéril em contribuições práticas para a
civilização, mas até mesmo seu grande engenheiro, Arquimedes de Siracusa,
se recusou a escrever sobre suas invenções e descobertas práticas; para
manter seu status de amador, divulgava apenas seus feitos em matemática
pura.

E a falta de interesse nas coisas terrenas — na invenção, na
experimentação, no estudo da natureza — foi apenas um dos fatores que
impuseram limites ao pensamento grego. A ênfase dos gregos no estudo
puramente abstrato e formal — de fato, o próprio sucesso deles na geometria
— levou-os a um segundo grande erro e, eventualmente, a um beco sem saída."
(Isaac Asimov, "New Guide to Science", Capítulo 1, "What Is Science?",
tradução do Chat GPT).


Em ter., 15 de jul. de 2025 às 18:09, Eduardo Ochs <eduardoo...@gmail.com>
escreveu:

> Oi todos!
>
> Deixa eu fazer umas definições: uma "pessoa Bourbaki" é uma que gosta
> do estilo Bourbaki e gosta de expôr idéias matemáticas de um jeito bem
> abstrato, sem exemplos e sem motivação; uma "pessoa não-Bourbaki"
> prefere incluir exemplos e motivação.
>
> Até alguns anos atrás mesmo as pessoas não-Bourbaki precisavam fazer
> papel de pessoas Boubaki pra conseguirem publicar, mas agora tem sites
> de preprints e tem blogs, e as pessoas não-Bourbaki conseguem
> "publicar" textos não-Bourbaki... em geral em formas que não dão
> diretamente pontos em todos as métricas de produtividade, mas alguns
> desses textos podem acabar virando artigos-Bourbaki algum dia.
>
> É mais fácil a gente aprender a expôr idéias matemáticas num estilo
> não-Bourbaki "com os outros" do que "sozinhos".
>
> > No geral, o que pensam os colegas sobre a forma clássica de
> > exposição dos avanços matemáticos?
>
> Eu detesto o estilo Bourbaki e tou há anos aprendendo técnicas
> não-Bourbaki de escrever e de pensar - e muitas outras pessoas da
> lista também. Aliás, algumas já contaram os exemplos preferidos delas
> de "técnicas não-Bourbaki" que elas aprenderam com os outros... e eu
> acho que é por aí que a gente tem que começar.
>
> Um dos professores que eu mais gostava quando eu tava na graduação em
> Matemática na PUC-Rio - o Carlos Tomei - usava um monte de técnicas
> não-Bourbaki, e ele sempre dizia que elas eram parte da cultura oral
> dos matemáticos aplicados com quem ele tinha estudado, e elas não
> estavam publicadas em lugar nenhum. Uma das técnicas principais dele
> era assim: ele começava com um problema bem concreto, que tinha
> algumas constantes que eram valores simples bem escolhidos, e nesse
> caso a gente conseguia entender num instante a solução que ele
> mostrava... e aí ele dizia "e isso vale pra qualquer valor de 200!", e
> a gente via que a gente podia substituir certas constantes por uma
> variável e obter uma técnica bem mais geral em que as contas tinham
> exatamente a mesma estrutura - ou quase - que o caso particular com
> que a gente tinha começado.
>
> Aos poucos eu fui adaptando isso de vários jeitos e encontrando um
> monte de bons critérios pra escolher os casos simples por onde eu
> começava, e que eu generalizava depois. Um dos meus exemplos
> preferidos é parecido com o que o Márcio Palmares mencionou no exemplo
> dele... pra descobrir como encontrar a distância entre duas retas r e
> s em R^3 é melhor começar com uma reta r paralela ao eixo x e uma reta
> s parela ao eixo y, depois a gente permite que a reta s fique torta de
> um certo jeito, depois a gente permite que ela fique torta de jeitos
> mais complicados ainda, e depois a gente vai entortando a outra reta
> aos poucos - e em caso passo a gente chega numa fórmula um pouco mais
> complicada que a do passo anterior, mas que a gente ainda consegue
> visualizar o que ela quer dizer.
>
> O melhor artigo que eu já escrevi tem um bocado sobre isso,
>
>   http://anggtwu.net/math-b.html#2022-md
>
> mas não tem quase nada sobre como usar essas técnicas pra Geometria
> Analítica, pra Cálculo, e pra Estatística Básica...
>
>   [[]],
>     Eduardo Ochs
>
>
> On Tue, 15 Jul 2025 at 11:21, Márcio Palmares <marciopalma...@gmail.com>
> wrote:
>
>> Tive um professor de cálculo fora de série... Um dia ele começou uma aula
>> de cálculo II (início do volume II do Guidorizzi) propondo uma discussão
>> com a turma sobre de que modo poderíamos determinar a projeção ortogonal de
>> um vetor u sobre um vetor v... Intuitivamente, parecia óbvio que a projeção
>> ortogonal seria obtida quando um certo "lambda-u menos v" tivesse a menor
>> norma possível (ver figura). Ao tratar de escrever essa norma como função
>> do escalar lambda, vemos que para minimizar a norma basta derivar a função
>> obtida e verificar qual é o escalar que anula a primeira derivada...
>>
>> Como resultado dessa discussão, aparecem o escalar da "fórmula da
>> projeção ortogonal" de um vetor sobre outro e, como um brinde, surge a
>> desigualdade de "Cauchy-Schwarz".
>>
>> Nos livros, entretanto (por exemplo, no de Análise do Elon) essa
>> desigualdade é demonstrada em um passe de mágica: aparece um polinômio
>> quadrático não se sabe de onde, e uma desigualdade óbvia envolvendo o
>> discriminante do polinômio é utilizada...
>>
>> A sensação que temos ao ler esse tipo de demonstração é tremendamente
>> frustrante...
>>
>> Fiquei pensando: será que os livros podem ser deficitários neste aspecto
>> e seria dever do professor suplantar a deficiência dos livros?
>>
>> O problema é que nem todos os professores têm a disposição de completar a
>> deficiência dos livros com a exposição da gênese dos conceitos (em oposição
>> à sua descrição o mais curta possível em uma demonstração).
>>
>> (Tive alguns professores que meramente transcreviam o livro-texto no
>> quadro, mas felizmente foram exceções).
>>
>> Obs.: não é necessário que a gênese de certo conceito coincida com sua
>> gênese histórica. Mesmo uma gênese conceitual "artificial" pode funcionar
>> muito bem.
>>
>> A predominância dessa forma de exposição crua, que prejudica o
>> aprendizado, tem raízes profundas, e quase certamente deriva do fato de
>> que, em seus primórdios, o conhecimento matemático deveria estar disponível
>> apenas para "iniciados". Obscurecer um conceito é uma garantia de
>> preservação do status do escriba.
>>
>> M.
>>
>>
>>
>> Em terça-feira, 15 de julho de 2025, João Ferrari <joaovito...@gmail.com>
>> escreveu:
>>
>>> Oi João,
>>> como vai?
>>>
>>> Concordo 100% com o teor da thread. Acrescento ainda que uma coisa nessa
>>> linha que me enfurecia nos meus tempos de graduação era ver esse estilo
>>> minimal e 'corrido' sendo adotado por livros supostamente didáticos. Isto
>>> é, além de entender a prova, o aluno tinha que fazer o trabalho de
>>> detetive/médium para decifrar de onde autores tiraram certos passos
>>> cruciais que pareciam ter aterrissado no meio da prova---isso quando tais
>>> passos não eram ocultados sob a maldição do 'isto fica como exercício para
>>> o leitor'. Acho que essa cultura tem minguado, de maneira geral, e a thread
>>> captura corretamente essa tendência no que diz respeito à produção de
>>> artigos.
>>>
>>> Ainda no contexto dos livros didáticos: eu até entendo a motivação,
>>> muito popular na matemática, de fazer o leitor se engajar no conteúdo e
>>> praticar enquanto lê. Mas penso que muitas vezes autores nem se dão conta
>>> de que para aquilo se tornar um exercício produtivo, a pessoa que está
>>> lendo precisa ter um bom arcabouço já solidificado na cabeça. Isso é
>>> particularmente contraproducente no caso de quem se aventura por conta
>>> própria na área, como foi o meu caso, inicialmente. Muitas vezes, a
>>> impressão que eu tinha era de que você precisava já saber do conteúdo antes
>>> de ler.
>>>
>>> A propósito, um livro de fundamentos de lógica que faz o oposto disto, e
>>> cujo estilo eu tenho recomendado para todo mundo é o recente *Foundations
>>> of Logic: Completeness, Incompleteness, Computability*, do Dag
>>> Westerståhl (um review que o Peter Smith sobre ele:
>>> https://www.logicmatters.net/2024/08/21/book-note-westerstahl-foundations-of-logic-i-ii/).
>>> Nas apresentações e provas o autor praticamente se coloca na perspectiva de
>>> um aluno, adiantando várias questões e dúvidas que poderiam surgir; e
>>> também busca provar vários resultados auxiliares/passos cruciais que a
>>> literatura em geral ignora pois os toma como triviais ou não tão
>>> relevantes---mas um aluno, na maioria das vezes, é ainda incapaz de fazer
>>> essa curadoria. O livro faz isso tudo sem 'dumb down the content' em parte
>>> alguma, o que eu acho incrível.
>>>
>>> Enfim, só os meus dois dedos de prosa sobre o assunto.
>>> Grande abraço,
>>> João F.
>>>
>>> Em seg., 14 de jul. de 2025 às 12:35, Joao Marcos <botoc...@gmail.com>
>>> escreveu:
>>>
>>>> "The desiccated "Theorem, Lemma, Proof, Corollary,..." presentational
>>>> style is staggeringly counterproductive, if one's objective is
>>>> actually communicating the underlying mathematical intuitions and
>>>> thought processes behind a result."
>>>> https://x.com/getjonwithit/status/1943232298977030348
>>>>
>>>> Uma das grandes dificuldades que matemáticos em formação encontram ao
>>>> entrar na guilda para aprender os ossos do ofício é que nesta área não
>>>> é habitual contar a história de como se chegou a um certo resultado, e
>>>> o costumeiro, na realidade, é esconder tudo que deu errado pelo
>>>> caminho...
>>>>
>>>> Alguns ainda vão mais além, e acrescentam que é importante "motivar
>>>> mais" os resultados teóricos e também se esforçar mais por
>>>> familiarizar os estudantes com a "história da área".  Tudo isto se
>>>> aplica à Lógica, claro: o quão importante seria *para o aprendizado do
>>>> neófito*, digamos, a ampla _motivação_ prática da introdução de certos
>>>> métodos ou estratégias de raciocínio, ou a apresentação detalhada do
>>>> _histórico_ de como certos conceitos foram paulatinamente
>>>> desenvolvidos por estes ou aqueles gênios ou civilizações
>>>> particulares?
>>>>
>>>> No geral, o que pensam os colegas sobre a forma clássica de exposição
>>>> dos avanços matemáticos?
>>>>
>>>> []s, Joao Marcos
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