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Ciência e poesia - Terapia nº 3
Bula:
Indicação: Inveja, incontinência verbal, maledicência, injúria e difamação.
Modo de usar: Poema a ser lido em voz alta, sozinho, no quarto ou no consultório, de frente para um espelho.
Posologia: Ler 3 vezes ao dia, ao acordar, ao final da manhã e após o consultório, por 3 dias. Se não cessarem os sintomas, é recomendável que a vítima procure um médico sociólogo, pois deve tratar-se de sociopatia grave
Via de administração: Utilizar tom irônico, de quem critica a si próprio com as palavras de seus detratores, certo de que estes sim possuem abundantemente todas as características que lhe atribuem. 
Efeito desejado: Perceber que as pessoas que o criticam não possuem eles mesmos auto-crítica alguma, e projetam no outro seu inconformismo com a própria mediocridade - inveja no seu estado puro, em que o possuído pelo mal acredita piamente que o outro fez ou obteve aquilo tudo apenas por que teve sorte imerecida...
 
Poema em linha reta
 
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
 
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado.
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridívculas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo
 
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
 
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
 
Ó príncipes, meus irmãos,
 
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente neste mundo?
 
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Poderão ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com meus superiores sem titubear?
 
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil, no sentido mais mesquinho e infame da vileza. 
 
Fernando Pessoa (1888-1935)
Poeta português, escrito em torno de 1915
 
 
E agora pergunto aos príncipes
E seus bobos da corte
Aos demais bons colegas
Que claro já entenderam:
 
Alguém terá sido vil?
 
Promovendo concursos e manipulando vagas?
Fazendo do público ou do coletivo o seu privado?
Aceitando patrocínios e suas orientações?
Aceitando convênios e reservas de mercado?
Explorando o trabalho de colegas e outras profissões?
Criando mentiras, articulando farsas e conluios?
Pressionando residentes e pós-graduandos?
Retardando a Medicina Preventiva?
Excluindo os mais competentes de suas proximidades?
Bloqueando a concorrência livre, ampla e ética?
Faturando com ensino sem preocupar-se com mercado de trabalho?
Ou pior de tudo:
Dificultando a tomada de consciência e a reação coletiva?
 
E mais o quê, que ainda não sabemos?
 
Terei sido eu? Logo eu?
Terei eu sido vil, literalmente vil,
Vil, no sentido mais mesquinho e infame da vileza? 
 
Marcos Sarvat
 
Um homem honesto não pode sentir prazer no exercício do poder sobre seus concidadãos.
Thomas Jefferson 

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