Desproporcional e inócua *Bloquear do YouTube não está de acordo com
legislação*http://conjur.estadao.com.br/static/text/51754,1

por João Fabio Azevedo e Azeredo

(Consultor Jurídico)

Começou como uma indiscrição de um casal flagrada por um cinegrafista, mas
tornou-se um caso de relevância nacional que pode determinar o futuro do
livre acesso à informação em nosso país. A decisão do desembargador Ênio
Santarelli Zuliani determinou que se bloqueasse o acesso de usuários
brasileiros ao vídeo do casal Daniela Cicarelli e Renato Malzoni por meio de
implantação de filtros nos sistemas das empresas que operam os
*backbones*(explicado de maneira extremamente simples, são cabos de
telecomunicação que
ligam o Brasil à internet). Uma vez posta em prática, a decisão teve um
efeito bastante absurdo: o bloqueio quase total dos usuários brasileiros ao
popular sítio *youtube.com <http://www.youtube.com/>**.*



A rápida e quase unânime rejeição dos usuários de internet no Brasil dessa
decisão mostra que o Poder Judiciário foi incapaz de dar uma solução justa
ao caso. Felizmente, porém, o desembargador voltou atrás em sua decisão e
determinou que o acesso ao sítio fosse permitido novamente.



Não obstante, este processo tem se mostrado uma sucessão de equívocos que
por fim levaram à decisão de bloqueio, que é claramente desligada da
realidade. Sem tocar na questão material, que sozinha é assunto suficiente
para uma tese de mestrado, deve ser destacado que a decisão de determinar o
bloqueio ao site *Youtube* (ou qualquer outro nesses moldes) não está de
acordo com a legislação processual vigente.

* *

Apesar de o famigerado processo correr em segredo de Justiça, não é preciso
ter poderes para-normais para saber os fundamentos do pedido dos autores da
demanda: o vídeo feito pelo cinegrafista invade a privacidade dos autores e,
dessa forma, estes se socorrem ao Poder Judiciário para que este determine
que as rés tirem o vídeo do ar a fim de resguardar a privacidade dos
autores.



Se tivermos em mente o paradigma de telecomunicação vigente até o início dos
anos 80, o argumento apresentado parece bastante lógico. No entanto, a
realidade no ano 2007 é outra. A obra seminal de Yochai Benkler[1] mostra
essa mudança de paradigma com muita clareza. O modelo de comunicação em
massa do século XX no qual a informação era disseminada à sociedade por meio
de um reduzidíssimo número de organizações que detinham os meios de
transmissão não é mais o único possível para a disseminação de informações.
A grande disseminação e relativo baixo custo do uso de computadores pessoais
e a sua ligação em rede tem proporcionado a possibilidade de uma
descentralização na criação e distribuição de informação, conhecimento e
cultura.



Não dependemos mais unicamente dos grandes meios de comunicação para
recebermos informação. É claro que não se pode negar a influência destes e o
seu papel como provedores de informação, uma vez que a grande maioria das
informações que recebemos ainda vem de um desses meios (jornais, televisão,
rádio, etc.), mas também não se pode ignorar que estes meios não são mais
nossas únicas fontes (blogs, wikis, youtube, entre tantos outros exemplos
provam isso).



O mesmo vale para cultura, arte e pesquisas científicas. O baixo custo dos
meios de produção e disseminação de informação (computador pessoal e conexão
à internet) permitiu que qualquer um que assim queira possa tomar parte na
criação de disseminação de informação e conhecimento.



A relevância dessa mudança de paradigma para o presente caso reside na
utilidade do pedido de bloqueio por parte dos autores da demanda. Em um
cenário em que a disseminação de informações é concentrada em um punhado de
entidades, é eficaz impor a obrigação de não fazer àqueles responsáveis pela
sua distribuição.



Quando a disseminação de informações é feita de forma descentralizada,
porém, a tentativa de impedir a disseminação é impossível[2]. Uma vez na
internet, para sempre na internet. Nota-se que neste caso os autores
ajuizaram ação contra as empresas responsáveis por alguns poucos sítios
bastante populares no Brasil, entre eles o *Youtube*. O pedido de
antecipação de tutela foi concedido para determinar que os réus tirassem do
ar o referido vídeo. A decisão foi em grande parte cumprida[3] e, não
obstante, qualquer um pode ver o tal vídeo a qualquer momento em diversos
sítios no Brasil e no exterior[4].



O único efeito prático da decisão foi atrair mais atenção para o caso e
redirecionar o fluxo de acesso dos sítios que cumpriram a decisão (réus na
demanda), para todos os outros sítios que não são partes na demanda e,
portanto, não estão obrigados a cumprir a decisão.



Fazendo um grande esforço de boa vontade e admitindo que os autores tenham
de fato alguma privacidade a ser protegida neste caso, seria o pedido, na
forma que foi feito, capaz de alcançar o objetivo de impedir que o vídeo
fosse visto e a privacidade do casal fosse protegida? Jamais.



Não há qualquer dúvida que falta aos autores o interesse de agir neste caso,
que é condição para ajuizar ação conforme previsto no artigo 3º do Código de
Processo Civil. O tema acerca do interesse de agir é bastante discutido no
âmbito do Processo Civil, mas pode se dizer que o interesse se caracteriza
pelo binômio necessidade-adequação, ou seja, para que possua direito de agir
o autor da demanda deve demonstrar que o ajuizamento da demanda era a única
forma pela qual poderia ter seu direito tutelado (necessidade) e que o
pedido postulado é capaz de satisfazer a sua pretensão (adequação). Como
ensina Humberto Theodoro Júnior, citando José Frederico Marques:



*"não se pode dizer que exista interesse processual se aquilo que se reclama
do órgão judicial não será útil juridicamente para evitar a temida lesão. É
preciso sempre 'que o pedido apresentado ao juiz traduza formulação adequada
à satisfação do interesse contrariado, não atendido ou tornado incerto'(...)
*

* *

*Falta interesse, em tal situação, porque é inútil a provocação da tutela
jurisdicional se ela, em tese, não for apta a produzir a correção argüida na
inicial."[5]*



No presente caso, tendo-se em mente a arquitetura da internet, não há
qualquer dúvida de que o pedido de que um pequeno número de sítios da
internet seja obstado de exibir o vídeo do casal não é a medida adequada
para proteger o direito à alegada privacidade dos dois.



Ainda que os sítios escolhidos para figurar no pólo passivo concentrem um
grande volume tráfego, ou seja, são os mais vistos pela população, o fato é
que a proibição apenas desvia o fluxo de acesso desses sites para aqueles
que não figuram no pólo passivo da demanda.



Vale frisar que o Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisão na qual
reconhece a falta interesse de agir quando a tutela pleiteada não é capaz de
proteger o direito argüido[6].



Outro ponto que deve ser ressaltado é a total ineficácia da implantação da
medida. Poucas horas após a ativação do bloqueio ao *YouTube*, diversos
sítios divulgaram tutoriais que explicam como contornar o transtorno e ainda
assim acessar o site alegadamente bloqueado[7] (frise-se que o procedimento
descrito nesses tutoriais não viola qualquer lei ou decisão judicial).



Outro ponto que deve ser discutido é o excessivo ônus que o cumprimento da
decisão impõe a terceiros. Ônus financeiro às empresas que operam os *
backbones* e ônus imaterial para todos os demais usuários de internet do
Brasil, que tiveram seu direito de acesso à informação sensivelmente
restrito por conta da decisão.



Não se prega aqui a desconsideração de garantias individuais para a
manutenção do direito da maioria, mas que as decisões judiciais devem
guardar alguma proporcionalidade entre o direito tutelado e o ônus imposto
aos réus e a terceiros.



Como defende Luiz Guilherme Marinoni:



*"Como a concentração dos poderes de execução do juiz exige uma cláusula
aberta ao caso concreto, trata-se de exigir uma relação entre o uso do poder
e as peculiaridades da situação conflitiva. Esse controle somente pode ser
feito mediante uma regra hermenêutica que suponha que há uma cláusula geral
legal que deve ser concretizada pelo juiz em face das circunstâncias do caso
concreto. (...)*

* *

*Tal regra hermenêutica é a da proporcionalidade. Essa regra se desdobra em
três sub-regras, que são a regra da adequação, a regra da necessidade e a
regra da proporcionalidade em sentido estrito. (...)*

* *

*A adequação se coloca no plano dos valores, querendo significar que a ação
material não pode infringir o ordenamento jurídico para proporcionar a
tutela. A necessidade, por sua vez, tem relação com a seara da efetividade
da ação material, isto é, da sua capacidade de realizar – na esfera fática -
a tutela do direito. É por tal motivo que essa última regra se divide em
outras duas: a do meio idôneo e a da menor restrição possível. O fazer
idôneo é aquele que tem a capacidade de proporcionar faticamente a tutela.
Mas, essa ação (fazer ou não fazer), embora idônea à prestação da tutela, deve
ser a que cause a menor restrição possível à esfera jurídica do réu. Quando
tal ação é idônea e, ao mesmo tempo, causa a menor restrição possível, ela
deve ser considerada a mais idônea ou a mais suave para proporcionar a
tutela"[8]*



O mesmo argumento se estende a direitos de terceiros. Ainda que se possa
argumentar a favor da possibilidade de bloqueio de determinados conteúdos
pelo Poder Judiciário, é inegável que esse bloqueio jamais poderá ocorrer na
forma como presenciamos: indiscriminada e geral.



O que transparece pela sucessão de fatos neste caso é que faltou aos
magistrados perceber a mudança no paradigma da forma de disseminação de
informações, a arquitetura da internet, e, principalmente, medir e pesar as
conseqüências que as decisões tomadas terão sobre as partes e sobre
terceiros.



Ainda que tenha voltado atrás na decisão de bloquear acesso ao sítio[9], ao
se ler a argumentação desenvolvida pelo relator do recurso nota-se que este
ainda não percebeu a profundidade das mudanças trazidas pela mudança do
paradigma das telecomunicações.



Alega o relator que "o incidente serviu para confirmar que a Justiça poderá
determinar medidas restritivas, com sucesso, contra as empresas, nacionais e
estrangeiras, que desrespeitarem as decisões judiciais".



Não se nega que é imperativo que o Poder Judiciário faça valer suas
decisões. No entanto, esse não pode ser um fim em si próprio, especialmente
se impõe sérios ônus sobre milhões de terceiros. Respeito não se impõe à
força, especialmente se a tentativa de imposição fracassa tão pateticamente
como neste caso.



Neste caso, como argumentado, a tentativa de impedir a exibição do vídeo
parece totalmente inócua e inviável. O gênio já saiu da garrafa e não há
como colocá-lo de volta. Se o casal entende que teve seus direitos violados,
pode pleitear a reparação destes, seja ajuizando ação contra o cinegrafista,
seja contra os usuários que tornaram o vídeo disponível, ou contra quem mais
entenderem que seja responsável, mas não há como impedir que o vídeo seja
visto (pelo menos não enquanto vivermos em um Estado de Direito
Democrático).

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[1] The Wealth of the Networks, disponível em inglês no sítio
http://www.benkler.org/wealth_of_networks/index.php/Main_Page. A tradução
para o Português é um trabalho colaborativo em andamento e pode ser
encontrada em
http://www.benkler.org/wealth_of_networks/index.php?title=Translation_to_Brazilian_Portuguese.
Ambos consultados pela última vez em 09/01/07.



[2] Essas afirmações são feitas tendo em vista a atual arquitetura da
Internet, uma vez que, como bem argumenta Lawrence Lessig, a arquitetura
descentralizada na Internet pode ser alterada para que se tenha  maior
controle sobre ela. Este argumento é desenvolvido de forma brilhante no
livro "Code and Other Laws of Cyberspace". Lawrence Lessig, Code and other
Laws of Cyberspace, Basic Books, New York, 1999.



[3] Vale destacar que a tentativa de se ver o referido vídeo no Youtube é na
maioria das vezes frustradas, mas dado o sistema de funcionamento do sítio,
no qual qualquer usuário pode postar um vídeo, algumas vezes por intervalos
pequenos de tempo, o vídeo ficava disponível no site, sendo bloqueado pouco
tempo depois.



[4] Uma pesquisa em sites de pesquisa como o www.ask.com; www.yahoo.com;
www.msn.com; com as palavras "cicarelli" e "video" prova o argumento.



[5] Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, Volume I,
fls. 50, 33ª edição, Rio de Janeiro 2000, Editora Forense.

Revista *Consultor Jurídico*, 9 de janeiro de 2007
Sobre o autor

<[EMAIL PROTECTED]> *João Fabio Azevedo e Azeredo*: é advogado em São
Paulo e mestre em Direito e Tecnologia da Informação pela Universidade de
Estocolmo.

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