[Logica-l] Re: Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN
Camaradas, boas noites. Vou deixar aqui dois enlaces para vossa apreciação, antes de fazer algumas considerações. Perdoem-me a loquacidade. 1º enlace: https://educare.fiocruz.br/resource/show?id=gMz-x5-F 2º enlace: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2019/12/20/constelacao-familiar-machismo-e-pseudociencia-custas-do-sus Consideração: 0,003% da classe médica nacional não deve ser bolsonarista, o que, convenhamos, é um bom sinal dadas as circunstâncias. Perdoem o sarcasmo, mas adoro perguntas retóricas: Como chegamos a Bolsonaro? #mistérioprofundo Agora, deixando de lado apenas momentaneamente o exercício de cinismo salutar à sanidade mental, é preciso lembrar que o termo pseudociência já foi criticado por pressupor um sentido verdadeiro e único de ciência, o q, como se sabe, leva a dificuldades de maior monta. Eu, particularmente, não gosto da expressão, mas é a q se usa. Não tenho outra melhor para oferecer. Peirce usava "sham reasoning" para contrastar com "inquiry" (não apenas ciência, qq inquiry). Na inquiry, a conclusão é adotada após se raciocinar, por se ter raciocinado; no sham reasoning, a conclusão é adotada antes de raciocinar e o raciocínio é posteriormente usado apenas para justificar a conclusão previamente aceita. Como a racionalidade científica emerge do senso-comum, a relação é complicada. Mas, penso, o ponto mais importante não é esse, mas q os negacionismos atuais - o científico, o histórico e todos os outros q conseguirem identificar - são um sintoma da modernidade reflexiva, conforme a expressão q tomo do professor australiano Andy Blunden, isto é, são produzidos como efeitos de uma cultura de massificação do saber formal. Pela primeira vez na história, o século XX viu surgir uma massa de gente letrada, altamente especializada e intelectualizada, a par e em consequência da massificação da alfabetização (formal ou literal). Até o século XIX, a maior parte da população mundial não só morria de cólera (ou outras doenças) como as pessoas morriam analfabetas, sendo a literatura e a cultura científica reservada às classes dominantes. O Gattopardo de Lampedusa, p.ex., era astrônomo. Aquelas fotos da (ou das?) conferência que reuniu Einstein, Marie Curie, Poincaré e outros, no começo do século XX, é bem ilustrativa: quem fora dali já tinha ouvido falar em átomo, relatividade, radiação etc.? Hoje em dia, a comunidade científica não só se expandiu além de qualquer critério facilmente identificável como tornou obsoleto o ideal de esclarecimento q a filosofia um dia tomou para si. A nossa modernidade produziu um ceticismo racionalista altamente qualificado para questionar a si própria e os negacionismos são rebentos desse fenômeno social, um filho não reconhecido do Iluminismo (não diria bastardo; acho q bastardos são os outros filhos, reconhecidos, dentre os quais a ideia de democracia liberal). A reação romântica ao iluminismo tem muito desse ceticismo, aliás. O recurso a uma transcendentalização do humano é velho conhecido dos jovens místicos, desde mais ou menos Rudolf Steiner; mas a ideia remonta pelo menos a Locke e se vê em livros, filmes, séries etc., e eu a resumo assim: é da liberdade de cada um decidir viver segundo a norma da sociedade política ou não; quem não quiser, pode voltar ao estado de natureza. O abandono da civilização, no entanto, é artificial, pois não apenas as bombas cairão sobre quaisquer cabeças em caso de guerra, como no estado de natureza também tem gente, de forma que também tem normas (a não ser q mandem matar e botar fogo em tudo, o q sempre é uma opção, como é público e notório). Sobre esse ponto da idealização de uma vida fora dos padrões de racionalidade e cientificidade instituídas e fuga da civilização, a quem se interessar, sugiro a leitura de um livro muito bom, Jon Savage, A Criação/Invenção da Juventude, não lembro bem como traduziram. Mas eu poderia lembrar tb a história do Chris Supertramp, personagem real do livro e do filme homônimos Into the wild; ou ainda o garoto urso, Timothy Treadwell, cuja trágica história foi filmada por Werner Herzog. Num mundo em que as instituições cada vez mais se mostram extorsivas e a força de trabalho vale cada vez menos, não me espanta q mais gente com mais informação e sofisticado grau de educação formal tenda a recusar a civilização com base em argumentos de excepcionalidade individual (ouvi uma vez de uma mãe: "eu é q sei o que é melhor para o meu filho, e não vc ou a ciência"). Pois reencontrar uma essência natural que dará sentido à vida é mesmo uma ideia muito atraente. Resolveria nossos problemas, não precisariamos mais lutar contra as injustiças sociais ou contra o peleguismo, o fascismo, o sexismo nosso de cada dia etc. Isso dá muito trabalho, tem de existir outro jeito, né non? #sqn como se diz atualmente. Uma vez, um estudante q se dizia "libertário" me perguntou, com cara de espanto, "Então o senhor (quase caí de costas, fui
Re: [Logica-l] E-mail de compilação para logica-l@dimap.ufrn.br - 8 atualizações em 1 tema
Camaradas, boas noites. Vou deixar aqui dois enlaces para vossa apreciação, antes de fazer algumas considerações. Perdoem-me a loquacidade. 1º enlace: https://educare.fiocruz.br/resource/show?id=gMz-x5-F 2º enlace: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2019/12/20/constelacao-familiar-machismo-e-pseudociencia-custas-do-sus Consideração: 0,003% da classe médica nacional não deve ser bolsonarista, o que, convenhamos, é um bom sinal dadas as circunstâncias. Perdoem o sarcasmo, mas adoro perguntas retóricas: Como chegamos a Bolsonaro? #mistérioprofundo Agora, deixando de lado apenas momentaneamente o exercício de cinismo salutar à sanidade mental, é preciso lembrar que o termo pseudociência já foi criticado por pressupor um sentido verdadeiro e único de ciência, o q, como se sabe, leva a dificuldades de maior monta. Eu, particularmente, não gosto da expressão, mas é a q se usa. Não tenho outra melhor para oferecer. Peirce usava "sham reasoning" para contrastar com "inquiry" (não apenas ciência, qq inquiry). Na inquiry, a conclusão é adotada após se raciocinar, por se ter raciocinado; no sham reasoning, a conclusão é adotada antes de raciocinar e o raciocínio é posteriormente usado apenas para justificar a conclusão previamente aceita. Como a racionalidade científica emerge do senso-comum, a relação é complicada. Mas, penso, o ponto mais importante não é esse, mas q os negacionismos atuais - o científico, o histórico e todos os outros q conseguirem identificar - são um sintoma da modernidade reflexiva, conforme a expressão q tomo do professor australiano Andy Blunden, isto é, são produzidos como efeitos de uma cultura de massificação do saber formal. Pela primeira vez na história, o século XX viu surgir uma massa de gente letrada, altamente especializada e intelectualizada, a par e em consequência da massificação da alfabetização (formal ou literal). Até o século XIX, a maior parte da população mundial não só morria de cólera (ou outras doenças) como as pessoas morriam analfabetas, sendo a literatura e a cultura científica reservada às classes dominantes. O Gattopardo de Lampedusa, p.ex., era astrônomo. Aquelas fotos da (ou das?) conferência que reuniu Einstein, Marie Curie, Poincaré e outros, no começo do século XX, é bem ilustrativa: quem fora dali já tinha ouvido falar em átomo, relatividade, radiação etc.? Hoje em dia, a comunidade científica não só se expandiu além de qualquer critério facilmente identificável como tornou obsoleto o ideal de esclarecimento q a filosofia um dia tomou para si. A nossa modernidade produziu um ceticismo racionalista altamente qualificado para questionar a si própria e os negacionismos são rebentos desse fenômeno social, um filho não reconhecido do Iluminismo (não diria bastardo; acho q bastardos são os outros filhos, reconhecidos, dentre os quais a ideia de democracia liberal). A reação romântica ao iluminismo tem muito desse ceticismo, aliás. O recurso a uma transcendentalização do humano é velho conhecido dos jovens místicos, desde mais ou menos Rudolf Steiner; mas a ideia remonta pelo menos a Locke e se vê em livros, filmes, séries etc., e eu a resumo assim: é da liberdade de cada um decidir viver segundo a norma da sociedade política ou não; quem não quiser, pode voltar ao estado de natureza. O abandono da civilização, no entanto, é artificial, pois não apenas as bombas cairão sobre quaisquer cabeças em caso de guerra, como no estado de natureza também tem gente, de forma que também tem normas (a não ser q mandem matar e botar fogo em tudo, o q sempre é uma opção, como é público e notório). Sobre esse ponto da idealização de uma vida fora dos padrões de racionalidade e cientificidade instituídas e fuga da civilização, a quem se interessar, sugiro a leitura de um livro muito bom, Jon Savage, A Criação/Invenção da Juventude, não lembro bem como traduziram. Mas eu poderia lembrar tb a história do Chris Supertramp, personagem real do livro e do filme homônimos Into the wild; ou ainda o garoto urso, Timothy Treadwell, cuja trágica história foi filmada por Werner Herzog. Num mundo em que as instituições cada vez mais se mostram extorsivas e a força de trabalho vale cada vez menos, não me espanta q mais gente com mais informação e sofisticado grau de educação formal tenda a recusar a civilização com base em argumentos de excepcionalidade individual (ouvi uma vez de uma mãe: "eu é q sei o que é melhor para o meu filho, e não vc ou a ciência"). Pois reencontrar uma essência natural que dará sentido à vida é mesmo uma ideia muito atraente. Resolveria nossos problemas, não precisariamos mais lutar contra as injustiças sociais ou contra o peleguismo, o fascismo, o sexismo nosso de cada dia etc. Isso dá muito trabalho, tem de existir outro jeito, né non? #sqn como se diz atualmente. Uma vez, um estudante q se dizia "libertário" me perguntou, com cara de espanto, "Então o senhor (quase caí de costas, fui promovido a senhor!) acredita que as massas são capazes de se
[Logica-l] Re: Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN
Oi Daniel! Eu consigo imaginar disciplinas chamada "medicina, saúde e espiritualidade" que seriam interessantíssimas... a primeira imagem que me vem à cabeça é um curso dado por um médico que fez formação complementar em Homeopatia (ou: Homeopatia-no-sentido-Eduardo, que é algo completamente diferente de Homeopatia-no-sentido-João-Marcos) e que tenha um pouquinho de noção de Antropologia... e aí esse médico mostraria vários modelos mentais de como os seres humanos funcionam, mostraria várias noções diferentes de "saúde" e "doença", mostraria os pontos cegos que cada grupo aponta nas visões de ser humano, saúde e doença dos outros grupos, e poria todo mundo pra estudar e discutir... Só que tem alguns grupos que eu _acho_ que têm um modelo mental tão ruim de como os seres humanos funcionam que eu fico achando que pessoas desses grupos não têm como ter a estrutura mental necessária pra dar um curso como o acima. Um dos links que eu mandei no meu post inicial foi esse aqui, https://archive.md/TeS69 que leva pra uma versão despaywallizada do artigo d'O Globo, e esse trecho aqui do artigo. Olha esse trecho: "A Universidade tem a vocação institucional da busca do conhecimento em qualquer vertente que ele se apresente. Um dos conhecimentos mais significativos para a humanidade, foi aquele trazido por Jesus, que se dizia filho de Deus e comprovava isso com a produção de fenômenos que estasvam acima da capacidade humana do seu tempo e até os dias atuais, conforme relatos aceitos majoritariame pela maioria das pessoas que é informada. Ele explicava que veio ao mundo a pedido do Pai (Deus), assumir a personalidade do Cristo (Messias, Salvador) para ensinar a humanidade sobre o Amor, e a partir daí construir a família universal que seria a base para a construção do Reino de Deus, uma sociedade civil harmônica e sintonizada com a vontade de Deus. A importância de sua vida foi importante, a humanidade reconhece, pois dividiu o calendário em antes e depois do seu nascimento, nos fatos pré e pós Cristo. Muitas teses, livros, religiões foram desenvolvidas a partir dessas circunstâncias, que pretendem envolver o mundo e tornar realidade o Reino de Deus, a partir da Reforma Íntima feita por cada pessoa em seu próprio coração, tornando-se um cidadão do Reino de Deus, mesmo que esse reino não esteja ainda vigente na sociedade." Esse trecho ativa vários gatilhos meus. Pra mim a frase "a família universal que seria a base para a construção do Reino de Deus, uma sociedade civil harmônica e sintonizada com a vontade de Deus" soa como algo só pode ser dito por alguém que acha que indígenas e LGBTs são não só pessoas doentes como maçãs podres que contaminam as outras maçãs do cesto... [[]], Eduardo Ochs On Thu, 9 Dec 2021 at 16:38, Daniel Durante wrote: > > Oi Eduardo e colegas, > > Nunca tinha ouvido falar deste curso. Não consigo ler o artigo do Globo. Tem > um paywall. > > Mas a ementa da disciplina "medicina, saúde e espiritualidade", que o João > Marcos postou, me pareceu interessante. Pessoalmente, eu teria real interesse > em cursar uma disciplina sobre medicina e espiritualidade, principalmente se > ela fosse verdadeiramente pluralista no que tange à religião. > > Antes da pandemia andei frequentando um grupo de estudos aqui do Depto de > Filosofia da UFRN sobre os pensamentos indígenas brasileiros. A proposta não > é antropologia, é filosófica mesmo. E é bem legal. Recomendo muito o livro "A > Queda do Céu", do xamã yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert. > Sem falar nos excelentes livros do Ailton Krenak. > > A medicina "ocidental" acadêmica é ainda um luxo em muitos lugares do "Brasil > profundo" e do raso também. Os passes, rezas, chás, impostação de mãos, > promessas,... sempre estiveram lá, com os doentes e as doenças, muito antes > da medicina chegar. E não vão embora quando as ambulâncias chegam. Em minha > opinião, faz muito bem à universidade, aos médicos e demais profissionais > interessados em saúde aprenderem um pouco sobre estas tradições, sob diversos > aspectos, inclusive sob a perspectiva dos que a praticam e nelas acreditam. > > Claro que eu não conheço este curso e não sei exatamente o que eles fazem. > Mas enquanto ideia geral, me parece positivo. Afinal, a saúde é um conceito > muito mais amplo do que aquilo que cabe na medicina e mesmo na biologia. > > Saudações xamânicas, > Daniel. > > Em quarta-feira, 8 de dezembro de 2021 às 00:14:15 UTC-3, eduardoochs > escreveu: >> >> Meio off-topic, mas lá vai. >> Pessoas da UFRN, como está sendo a repercussão disso na universidade >> de vocês? >> >> https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/construcao-do-reino-de-deus-novo-curso-da-ufrn-choca-estudantes-de-medicina-25309373 >> https://archive.md/TeS69 >> >> [[]], >> E. -- Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google. Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber
[Logica-l] Re: Meio off-topic: Construção do Reino de Deus na UFRN
Oi Eduardo e colegas, Nunca tinha ouvido falar deste curso. Não consigo ler o artigo do Globo. Tem um paywall. Mas a ementa da disciplina "medicina, saúde e espiritualidade", que o João Marcos postou, me pareceu interessante. Pessoalmente, eu teria real interesse em cursar uma disciplina sobre medicina e espiritualidade, principalmente se ela fosse verdadeiramente pluralista no que tange à religião. Antes da pandemia andei frequentando um grupo de estudos aqui do Depto de Filosofia da UFRN sobre os pensamentos indígenas brasileiros. A proposta não é antropologia, é filosófica mesmo. E é bem legal. Recomendo muito o livro "A Queda do Céu", do xamã yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert. Sem falar nos excelentes livros do Ailton Krenak. A medicina "ocidental" acadêmica é ainda um luxo em muitos lugares do "Brasil profundo" e do raso também. Os passes, rezas, chás, impostação de mãos, promessas,... sempre estiveram lá, com os doentes e as doenças, muito antes da medicina chegar. E não vão embora quando as ambulâncias chegam. Em minha opinião, faz muito bem à universidade, aos médicos e demais profissionais interessados em saúde aprenderem um pouco sobre estas tradições, sob diversos aspectos, inclusive sob a perspectiva dos que a praticam e nelas acreditam. Claro que eu não conheço este curso e não sei exatamente o que eles fazem. Mas enquanto ideia geral, me parece positivo. Afinal, a saúde é um conceito muito mais amplo do que aquilo que cabe na medicina e mesmo na biologia. Saudações xamânicas, Daniel. Em quarta-feira, 8 de dezembro de 2021 às 00:14:15 UTC-3, eduardoochs escreveu: > Meio off-topic, mas lá vai. > Pessoas da UFRN, como está sendo a repercussão disso na universidade > de vocês? > > > https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/construcao-do-reino-de-deus-novo-curso-da-ufrn-choca-estudantes-de-medicina-25309373 > https://archive.md/TeS69 > > [[]], > E. > -- Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google. Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para logica-l+unsubscr...@dimap.ufrn.br. Para ver esta discussão na web, acesse https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/fd3098be-2793-4c24-a868-addcee53e72en%40dimap.ufrn.br.