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Roberto Marinho, Lula e o engano do povo
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Caio Navarro de Toledo
 
Roberto Marinho construiu seu império de comunicação durante o regime militar. Nele, seu império prosperou e se consolidou; durante mais de duas décadas, a Rede Globo foi o maior e eficiente sustentáculo político e ideológico da ditadura militar instaurada com a derrubada do governo constitucional de João Goulart. Uma frase do general-presidente Médici é a mais eloqüente prova disto; durante a plena vigência do AI 5, o ditador declarou: "Sinto-me feliz todas as noites quando assisto o noticiário. Porque, no noticiário da Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz". Sabe-se que Marinho, bem antes, manifestaria suas afinidades eletivas com regimes discricionários; como lembrou uma carta de leitor na Folha de S. Paulo, o jornalista teve ativa "participação no DIP, da ditadura Vargas, censurando jornais".  No Estado Novo, assim, ensaiou seus primeiros passos terrestres e provinciais; na ditadura militar, instaurada com o apoio militante de O Globo, voou alto e longe.
 
Por ocasião da campanha das Diretas, sob o férreo comando do dr. Marinho - como os serviçais a ele se referem - a Rede Globo omitiu o que se passava nas ruas e nas praças do País. No dia 25 de janeiro de 1984, por exemplo, o JN da TV Globo – acertadamente denominado de "a hora do Brasil na TV" -  de forma insólita e despudorada, informou que na praça da Sé, milhares de pessoas se reuniram para comemorar o aniversário da cidade de São Paulo; na verdade, mais de duzentas mil pessoas ali foram para exigir eleições diretas para Presidente da República.
 
Na chamada Nova República, a Globo apoiou Sarney sem restrições - em especial, a "campanha patriótica" em torno do Cruzado; com os militares na retaguarda, defendeu a ampliação do mandato presidencial do cacique do Maranhão, conquistado graças à corrupção e ao fisiologismo explícitos - denunciados inclusive por setores da grande imprensa brasileira.
 
Desde sempre, o PT e os movimentos políticos e sociais de esquerda eram freqüentemente criminalizados; a liderança mais prestigiosa das esquerdas, Lula da Silva,  era execrada como "figura maldita" e raramente comparecia nos noticiários da TV.
 
A Rede Globo, pelas mãos e atuação decisiva de Marinho, viria apoiar a candidatura de Fernando Collor; após o fatídico encontro televisivo entre Lula e Collor, às vésperas de um renhido 2º turno, o JN do dia seguinte editou facciosamente o debate favorecendo o "caçador de marajás"...  Nessa ocasião, Brizola protestou contra essa manipulação grosseira; aliás, foi ele, até recentemente, o único político que ousava questionar a atuação arbitrária  da Globo em momentos relevantes da vida política brasileira. (Lembre-se que, em 1982, a TV Globo, mancomunada com a empresa Proconsult, tentou fraudar a primeira eleição direta para o governo do estado do Rio de Janeiro. Se não fosse a ação enérgica de Brizola, denunciando a farsa em curso na apuração dos votos, o candidato de Marinho e da ditadura, Wellington Franco, poderia ser o vitorioso.)
 
Como se sabe, Marinho não deixou de apoiar Collor até o momento em que o lodaçal ainda não exalava um odor repulsivo; a partir das massivas manifestações populares em defesa do impeachment, foi suficientemente hábil para se afastar de Collor, ao contrário do dileto amigo de todas as horas, ACM, que, fiel ao presidente-corrupto, desceu com ele a rampa do Planalto.
 
Com a intensa propaganda do Real, a Globo contribuiu decisivamente para a eleição de FHC e nova derrota de Lula. Com FHC, a Globo governou. Em 2002, percebendo o tamanho do estrago econômico-social, durante o reinado de oito anos, Marinho e a Globo procuraram se desvincular da candidatura oficial. Serra foi rifado e perdeu.
 
Nas últimas eleições presidenciais, o candidato do PT deixou de ser hostilizado pelos noticiários da Rede nacional. Anunciada a vitória consagradora, o outrora barbudo-satanizado, foi, numa entrevista inédita de uma hora de duração, beatificado no altar nacional do JN. Surgia um novo Estadista, nascido no agreste nordestino e das classes populares.
 
Até o presente momento, Lula da Silva é um ilustre ícone da nova hagiografia global.
 
Quarta-feira, 6 de agosto de 2003, morreu o dono do império.
 
Se houvesse entre nós uma cultura política de esquerda, minimamente consistente e combativa, e caso existisse uma relativa democratização dos meios de comunicação de massa, certamente estaríamos livres, embora parcialmente, da mistificação promovida pelo conjunto da mídia nacional, logo após a morte de Roberto Marinho.
 
Da direita à esquerda domesticada - passando por empresários, sindicalistas, jornalistas, intelectuais e artistas (alguns destes, inclusive progressistas) -, apenas se ouviram glorificações à "magnífica obra" realizada pelo dr. Marinho em defesa da economia brasileira e na consolidação das instituições democráticas no País.
 
Desde algum tempo, imortal na vetusta Academia, Marinho, após sua morte, se transformou em herói nacional.
 
Antes de se dirigir ao velório, com alguns de seus mais eminentes Ministros de Estado, o presidente da República decretou luto oficial por três dias, como última homenagem ao mais novo pai da Pátria.
 
Um jornal carioca, em sua versão on line, difundiu a mais recente avaliação que Lula da Silva fez da pessoa e do papel representado pelo dr. Marinho em nossa história. Assim dizia a notícia do JB:
 
BRASÍLIA - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou nota oficial lamentando a morte do jornalista Roberto Marinho. Na opinião do presidente, o Brasil perde um homem que passou a vida acreditando no Brasil. ''Como diria nosso amigo Carlito Maia: Tem gente que vem ao mundo a passeio, tem gente que vem ao mundo a serviço. Roberto Marinho foi um homem que veio ao mundo a serviço - quase um século de vida de serviços prestados à comunicação, à educação e ao futuro do Brasil''.  Na comitiva presidencial que acorreu à residência do homenageado também estava o Ministro da Fazenda. O sr. Antonio Palocci, ex-militante trotskista, diante das câmeras e microfones, foi ainda mais generoso em sua avaliação sobre a contribuição cultural e política do falecido. Suas palavras são estarrecedoras: " (...) o dr. Roberto Marinho construiu o maior desse sistema, o Sistema Globo de Televisão, ajudando muito a integração do País e a expressão do Brasil no exterior (...) ele foi importante na consolidação das instituições democráticas no País. Portanto, é uma perda que o Brasil tem; mas nós devemos, mais do que qualquer coisa, aplaudir sua vida" . À noite, no horário radiofônico da Hora do Brasil, uma senadora do PT não deixou por menos: "Graças à Rede Globo, o Brasil não é um quintal cultural do Estados Unidos". Como, pois, não prantear o empresário desenvolvimentista, o democrata sem jaça e o combativo nacionalista? 
 
Exatamente 16 anos atrás, era radicalmente diferente a opinião de Lula da Silva e do conjunto do PT sobre figura de Marinho e da sua maior criatura. Discursando aos militantes e simpatizantes do partido, em 16 de setembro de 1987 – nos tempos do é dando que se recebe de Sarney - , Lula da Silva, sem paletó e gravata, não titubeou em seu juízo político sobre o nosso cidadão Kane e o papel ideológico representado pela Rede Globo:
 
 "Nós hoje somos um país com praticamente 20 milhões de crianças abandonadas; nós somos um país com 16 milhões de analfabetos; nós somos um país onde a história é contada pela Rede Globo de Televisão porque o senhor Roberto Marinho não faz outra coisa a não ser mentir para o povo."
 
Lula da Silva e seus assessores intelectuais têm afirmado que o Brasil e o mundo mudaram muito nas últimas décadas. Seria inevitável, pois, que o PT também mudasse; mais maduro politicamente e responsável ideologicamente teria se transformado o partido. Desta forma, Lula e seus companheiros têm publicamente afirmado que as lideranças maiores do PT, inclusive ele no passado recente, produziram muitas bravatas. Como registra o Aurélio, alguns dos sentidos do verbo bravatear são: jactar-se de valente, fanfarronar, blasonar...  A qual destes três estariam aludindo os dirigentes quando fazem este arremedo de autocrítica?
 
Ainda não sabemos. O que bem sabemos, sim, é que hoje o núcleo dirigente do PT - através da reabilitação de Roberto Marinho/Rede Globo de Televisão – repudiam palavras de ordem, ainda justas e corretas, que foram construídas pelos movimentos sociais e políticos na luta pela redemocratização do País.  Segundo a hermenêutica dominante e oficial, o povo hoje se equivocaria se ainda insistir em bradar o famoso refrão: "O povo não é bobo. Abaixo a Rede Globo".
 
Razões de Estado imporiam a retificação: "O povo se engana. Viva a Rede Globo".
 

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