Fernando Yamauti <fgyama...@gmail.com> escreveu:

> [...]
>
> Um outro caso que me incomoda muito e o Martin-Löf sempre joga em
> baixo do tapete: o porquê de " 'A true' infere 'B true' " ser
> correto, onde A é falso (onde o "falso" é clássico, ou seja, existe
> uma prova de \neg A) , para um construtivista. Como se constrói uma
> prova, a partir de uma prova de que o falso é verdadeiro?

Martin-Löf possui um conceito de "prova hipotética", isto é, em vez de
"prova" no sentido categórico, teríamos uma "prova" sob a assunção de
hipóteses.  Nesse caso, se nós temos que "¬A true", isto é, "A→⊥
true", e também temos "A true", então "B true" se segue por modus
pones e ex contradictione quodlibet (ECQ).  Uma primeira questão,
então, seria:

a) Por que ECQ seria correto de um ponto de vista construtivo?

Aqui, vale notar que a validade construtiva de ECQ não é uma posição
unânime.  Nesse sentido, G. F. C. Griss[1] é um dos dissidentes mais
importantes e interessantes, pois parece argumentar de um ponto de
vista puramente construtivo.  Outros construtivistas apresentam
motivações diversas para se rejeitar ECQ, em especial, motivações
relacionadas à relevância e ao uso da implicação na linguagem
cotidiana (por exemplo, Johansson[2] e Tennant[3]).

Eu, pessoalmente, acho ECQ um princípio *muito* suspeito.  O difícil é
que, sem ECQ, um construtivista ficaria basicamente sem negação (ao
estilo do cálculo mínimo de Johansson), ou a negação cessaria de ser um
operador *lógico*.  Uma exceção interessante é o caso da "Core Logic" de
Tennant, onde a negação é dada um caráter lógico, mesmo sem ECQ, pela
admissão de modus tollendo ponens (ou silogismo disjuntivo) e uma regra
especial para a implicação que permite obter ¬A,A⊢B.  Muitos, porém,
acham o preço a se pagar muito salgado: falha da transitividade
(monotonicidade, regra de corte).

De qualquer maneira, talvez ECQ possa ser fundamentado de um ponto de
vista construtivo.  Contudo, as fundamentações (explicações)
oferecidas até o momento, por Martin-Löf e outros, também me parecem
insatisfatórias.

b) Um outro problema é que Martin-Löf explica (reduz) o conceito de
"prova hipotética" ao conceito de "prova categórica" (sem hipóteses
abertas).

Isto significa que a correção de uma prova hipotética (dedução) é
predicada na possibilidade de se transformar provas categóricas das
hipóteses em provas categóricas da conclusão, isto é, na construção de
provas categóricas da conclusão com base em provas categóricas das
hipóteses.  Portanto, em última instância, a justificativa de
inferências como "¬A (A→⊥) true","A true" / "B true" apelam a provas
categóricas de "¬A true" e "A true" e daí, por modus ponens, a provas
categóricas do absurdo!  Estas provas categóricas não precisam ser
provas reais, mas devem, pelo menos, ser concebíveis, se é que a
explicação de Martin-Löf faz qualquer sentido.  Caberia a Martin-Löf,
e demais construtivistas que defendem posições similares, explicar o
que significa conceber provas categóricas do absurdo, em outras
palavras, o que significa conceber o impossível.

Alguns meses atrás, conversava com Bruno Bentzen a respeito de uma
anedota sobre o tema.  Segundo a anedota, alguém teria perguntado a
Martin-Löf, ou Prawitz, não me lembro qual, como seria possível
conceber uma construção que transformasse provas do absurdo em provas
de outra sentença, dado que não há provas do absurdo.  Ele teria
respondido: "Como se transforma um unicórnio num cavalo?  Cortando
fora o chifre.  Mas não há unicórnios."  A anedota é divertida, e
ilustra como podemos tratar de construções que talvez nunca poderão
ser efetuadas (seja porque não existem unicórnios ou porque não
existem provas do absurdo).  Porém, a inexistência de unicórnios
parece estar num patamar diferente (contingente) comparado com a
inexistência de provas do absurdo.

A concepção de raciocínios hipotéticos defendida por Martin-Löf, e
compartilhada por Prawitz e muitos outros, é tributária de BHK,
especialmente a cláusula para implicação.  Esta concepção também
recebe o nome de "primazia do categórico sobre o hipotético" ou
"concepção das hipóteses como variáveis" (a serem saturadas por provas
categóricas)[4].  Ela parece estar por trás de alguns resultados
negativos[5][6] publicados nos últimos anos com respeito a
fundamentações apoiadas nas regras de introdução, ou nas cláusulas BHK
concebidas como regras de introdução.  Estes resultados mostram que,
sob certas condições, tais fundamentações fracassam em capturar
exatamente os raciocínios intuicionisticamente deriváveis.

Martin-Löf, no artigo de fundamentação filosófica da sua Teoria dos
Tipos[7], assume que as regras de introdução dão o significado das
constantes lógicas e, a partir daí, justifica as regras de eliminação.
Isto demonstra, em terminologia corrente, a correção da lógica
intuicionista (como sistema formal) com respeito a uma fundamentação
baseada nas introduções (estilo BHK).  Contudo, a contrapartida (a
questão se todos os princípios de raciocínio justificáveis são de fato
deriváveis intuicionisticamente), isto é, completude, em terminologia
corrente, permanece em aberto no artigo, pois Martin-Löf não oferece
nenhum argumento em seu favor.  Os resultados mencionados
anteriormente mostram que, sob certas condições que parecem razoáveis
de um ponto de vista construtivo, uma fundamentação estilo BHK, quando
formulada precisamente (uma vez que BHK é uma espécia de fundamentação
(semântica) informal), justificaria inferências que não são
intuicionisticamente deriváveis.

Me parece que em ambos os quesitos, a) e b), a posição construtivista
de vertente intuicionista, conforme tradicionalmente concebida, deixa
muito a desejar.  Confesso que, às vezes, me pergunto se o
intuicionismo tradicional, como exemplificado pela tradição BHK, seria
mesmo uma posição filosoficamente coerente.

> [...]
>
> Ou ainda, outro problema que leva ao regresso infinito e a
> identificação de um objeto do conhecimento com o conhecimento desse
> objeto (que o Rodrigo havia comentado a um tempo atras de maneira
> diferente). Um juízo do tipo 'A true' pode virar uma proposição onde
> '(A true) true' se torna um juízo. E, mais. No ponto de vista
> epistemico, essas duas coisas são equivalentes (saber que vc sabe é
> igual a saber). Acho que o ponto de vista epistemico não bate com a
> teoria, já que garantir que o tipo "A é habitado" não é equivalente
> a A (em um dado universo), ou será que é? Ou seja, a justificativa
> do ML não é adequada e só a teoria funciona.

Na minha opinião, o potencial explanatório e de fundamentação da
Teoria Intuicionista de Tipos (TIT) se estraçalha a partir do momento
que se introduz universos.  A partir daí, me parece, a TIT assume um
caráter fortemente ad hoc e muitas da intuições iniciais vão para o
espaço.  Neste ponto, a única vantagem de TIT em comparação à ZF (sua
concorrente igualmente ad hoc), principalmente se você é um computeiro
ou matemático preocupado com computabilidade, é o fato de TIT ser
construtiva.  Por outro lado, os argumentos de que ZF seria
filosoficamente mais robusta e conceitualmente mais coerente (ver, por
exemplo, Harvey Friedman na FOM) não me convencem.  Acontece que, dado
que ZF é a doutrina ortodoxa, estamos acostumados a fazer vista grossa
para as aberrações em ZF e maldizer excessivamente qualquer
idiossincrasia de propostas alternativas, como TIT.

De qualquer maneira, mesmo num contexto muito elementar, abordar o
intuicionismo, ou construtivismo, de um ponto de vista epistemológico,
tal como Martin-Löf faz, me parece um equívoco.  Concordo ainda que a
discussão epistemológica de Martin-Löf em conexão com a fundamentação
da sua Teoria de Tipos é muito confusa, para se dizer o mínimo.

A epistemologia, contudo, não é a única rota para o intuicionismo, e
sequer me parece a melhor.  No âmbito puramente lógico, uma rota mais
interessante rumo ao intuicionismo passa pela filosofia da linguagem,
em particular, por um certo pragmatismo linguístico.  Neste sentido,
princípios lógicos estariam apoiados em práticas linguísticas regradas
(ver trabalho recente do Marcos Silva).  Esse tipo de inferencialismo
lógico ainda é muito incipiente, é verdade, mas me parece muito
promissor.

Saudações,

Referências:

[1] Arend Heyting.  G. F. C. Griss and his negationsless
intuitionistic mathematics.  Synthese 9 (1):91-96, 1955.
(ver referências nesse artigo para os escritos de Griss)

[2] Ingebrigt Johansson. Der Minimalkalkül, ein reduzierter
intuitionistischer Formalismus.  Compositio Mathematica 4, 119-136,
1937.

[3] Neil Tennant.  The Taming of the True. Clarendon Press, 1997.
(ver também artigos no RSL sobre "Core Logic")

[4] Peter Schroeder-Heister. The Categorical and the Hypothetical: A
critique of some fundamental assumptions of standard
semantics. Synthese 187 (3), 925-942, 2012.

[5] Wagner de Campos Sanz, Thomas Piecha and Peter
Schroeder-Heister. Constructive Semantics, Admissibility of Rules and
the Validity of Peirce's Law. Logic Journal of the IGPL 22 (2),
297-308, 2014.

[6] Thomas Piecha, Wagner de Campos Sanz and Peter
Schroeder-Heister. Failure of Completeness in Proof-Theoretic
Semantics. Journal of Philosophical Logic 44 (3), 321-335, 2015.

[7] Per Martin-L\"of. On the Meanings of the Logical Constants and the
Justifications of the Logical Laws. Nordic Journal of Philosophical
Logic 1 (1), 11-60, 1996.

-- 
Hermógenes Oliveira

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